Há por aí muita gente comparando o sacolejar dos ônibus em Curitiba a um touro mecânico, mas isso é um tremendo exagero, o touro mecânico não balança tanto assim. Entretanto, para mostrar que, se forçado, o ser humano é capaz de impressionantes feitos, elaborei um pequeno manual para a leitura de livros, e livros de papel, dentro dos ônibus locais.
Antes de tudo, é bom aceitar o quanto antes que você não irá viajar sentado. Mesmo admitindo que, por um desses milagres da vida, você entre em um ônibus com bancos vazios, é preferível que fique em pé perto da porta, porque fatalmente esse ônibus irá encher e depois você não conseguirá abrir espaço na multidão para descer. A menos que você vá até o ponto final, aí pode se sentar, mas isso é tão difícil de acontecer que a gente só admite como hipótese. E, convenhamos, até onde se sabe ninguém precisa de um manual para aprender a ler sentado.
Bem, mas não é porque você vai entrar em um ônibus lotado que qualquer um deles serve. Não! Se você pegar o ônibus em um terminal, é aconselhável deixar passar um ou dois, até que entre todo mundo e você fique no primeiro lugar da fila. Aí, quando o próximo ônibus chegar, você entrará por primeiro e terá direito a escolher entre os melhores lugares para se ficar em pé. Acredite, esses lugares existem.
Se você pegar um biarticulado, eu sugiro que espere o ônibus na porta 4. Assim que ele chegar, entre e corra imediatamente para a direita, isto é, na direção de uma das molas. Fique em cima da mola e agarre o primeiro ferro que aparecer pela frente. Dê preferência aos ferros das pontas. Aquele ferro que fica no meio da própria mola só pode ser segurado se a pessoa ficar de frente ou de lado para ela, e nessa posição a leitura ficará muito desconfortável. O ideal é conseguir ficar de costas para a mola.
Uma vez que tenha agarrado o ferro, defenda-o como a própria vida. Não se engane, todo mundo vai tentar pegar um pedacinho dele, e se você não cuidar vai ficar com um braço atravessado bem no seu campo de leitura. Se possível, rosne. Caso seja bem sucedido e fique com o ferro só para você, será possível inclusive abraçá-lo. Você ficará enganchado e terá as duas mãos livres para segurar o seu livro. Isso é importante porque, embora você só precise de uma mão para segurar, precisará da ajuda da outra para folheá-lo. Eventualmente, se tudo der errado e você estiver segurando o livro com uma das mãos e um ferro bem distante com a outra, será preciso um gesto de grande coragem para virar a página, isto é, largar uma das mãos por alguns milésimos e torcer para que não coincidam com o momento de alguma freada do ônibus, quando fatalmente virá a queda.
Uma vez que tenha agarrado o ferro, defenda-o como a própria vida. Não se engane, todo mundo vai tentar pegar um pedacinho dele, e se você não cuidar vai ficar com um braço atravessado bem no seu campo de leitura. Se possível, rosne.
Existe ainda uma outra estratégia relacionada à porta 4 do biarticulado que talvez seja de grande proveito para quem não consiga se adaptar à leitura sobre molas. Neste caso, a pessoa deve igualmente dobrar a direita ao entrar no ônibus e já em seguida se meter em um buraco existente entre a mola e uma placa de vidro. Você verá que é onde fica um lixeiro. Ora, este buraco dá exatamente para uma pessoa só, de maneira que, uma vez enfiado ali, você não será mais incomodado durante toda a viagem. Você terá ainda a vantagem de poder encostar as costas na dita placa de vidro, mais confortável do que a mola. Só terá mais dificuldade para esticar as pernas. Se for o caso, você pode tentar se sentar em cima do lixeiro. Entretanto, há diferentes modelos de lixeiro dentro dos ônibus, e alguns são colocados em espaços um pouco diversos um dos outros, de maneira que será na base da tentativa e do erro que se descobrirá se é melhor sentar no lixeiro ou ficar em pé encostado na placa de vidro. Costuma haver um ferro na frente dessa placa, então é só se segurar e, na medida do possível, relaxar, tirar o livro da bolsa e, enfim, ler.
Ah, sim, em relação ao livro que você vai ler também há algo a se dizer. Prefira edições menores, não precisa ser pocket, mas também não vá querer me ler “A Montanha Mágica” no ônibus. Primeiro que você vai sofrer mais para segurar o livro só com uma mão. E segundo que um calhamaço assim vai certamente acabar invadindo o espaço alheio, o que pode lhe render algumas discussões nada literárias.
No mais, leia, acredite, dá para ler. A leitura dentro do ônibus lotado é a sua vingança. Enquanto roubam duas, três horas do seu dia, no trajeto até o seu trabalho, você estará adquirindo conhecimento. Ler em condições tão desfavoráveis, num ambiente tão desconfortável, é a própria vitória do espírito sobre a matéria, da consciência sobre o corpo. Se algo sobrevive à sua morte, será o que tiver lido.