O Brasil tem uma vocação melancólica para o esquecimento. Como se carregássemos nos ossos uma espécie de fadiga ancestral que nos impede de sustentar o olhar diante do espelho da história. Há algo em nossa formação que prefere a fábula à ferida, o mito ao enfrentamento. E assim vamos, como quem dança sobre os escombros, fingindo que são pedras portuguesas.
Agora falam, com a naturalidade dos que não dormem mal, em anistia.
A palavra volta a circular, quase banalizada e com ares de conciliação, mas exala mofo. Tem o gosto rançoso de um país que coleciona pactos de silêncio como quem acumula medalhas. A cada geração, um novo acordo para enterrar, sem luto nem justiça, os crimes cometidos à luz do dia – ou sob as sombras cúmplices da noite.
Oito de janeiro foi isso: uma procissão grotesca de fantasmas vivos. Gente vestida de pátria como quem se fantasia de pureza. Invadiram a República como quem invade uma casa abandonada, para saquear, fotografar e mijar nas paredes da memória. Tudo transmitido em alta definição, com direito a comentários em tempo real.
Não foi delírio. Foi projeto.
Não foi descontrole. Foi método.
E, ainda assim, querem apagar.
Chamam de “excessos”, como se a fúria golpista fosse apenas uma questão de proporção. Como se a devastação das instituições pudesse ser comparada ao exagero de um tempero, ou ao erro de uma vírgula. Como se a democracia fosse um rascunho que se pode rasgar impunemente, desde que o gesto tenha sido cometido “em nome de algo maior”.
A anistia que se desenha, sorrateira, tenta resgatar da lama não apenas os corpos, mas os discursos. E é isso que mais assusta: a reabilitação moral do absurdo. A tentativa de dizer, com ar solene, que tudo não passou de um mal-entendido. Um tropeço coletivo. Uma “crise de comunicação”.
A anistia que se desenha, sorrateira, tenta resgatar da lama não apenas os corpos, mas os discursos. E é isso que mais assusta: a reabilitação moral do absurdo. A tentativa de dizer, com ar solene, que tudo não passou de um mal-entendido. Um tropeço coletivo. Uma ‘crise de comunicação’.
Não é novidade. Em 1979, também se falou em pacificação. E a História, amordaçada, teve de esperar décadas para que alguns crimes começassem – apenas começassem – a ser nomeados. Agora, repetimos a cena, com novos atores, mas com o mesmo roteiro. Um povo que não suporta encarar seus próprios monstros tende a abraçá-los. Anistiar não é perdoar. É consentir.
É convidar o crime a sentar-se à mesa, brindar ao esquecimento e redigir, a muitas mãos, a próxima tragédia.
Mas há quem lembre. Há quem escreva. Há quem registre com a teimosia dos que se recusam a transformar a verdade em alegoria. E talvez aí resista a esperança – não numa justiça que se impõe por decreto, mas numa memória que se recusa a morrer.
Porque esquecer, neste caso, não é humano. É cúmplice.
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