Eu devia ter entre 9 e 10 anos quando conheci Ramiro, filho de militantes políticos chilenos que há não muito tempo haviam desembarcado no Rio de Janeiro, após o golpe militar em setembro de 1973, que tirou a vida de Salvador Allende e levou o general Augusto Pinochet ao poder.
Tímido, sempre um tanto ressabiado, ele havia aparecido na sala de aula do nada, já nos derradeiros meses do segundo semestre letivo, sentado na carteira ao lado da minha. Trocamos algumas poucas frases, suficientes para descobrirmos que, embora estudássemos em um colégio semi-interno no bairro das Laranjeiras, ambos morávamos bem longe dali, na Avenida Nossa Senhora Copacabana, a uma dezena de quadras um do outro.
Ele se esforçava para falar com o pouco português que aprendera desde que chegara ao país, mas as conversas não evoluíram nas primeiras semanas para algo mais pessoal. Os silêncios eram constantes.
Muito concentrado, Ramiro sempre tinha à mão um livro (era fã de Isaac Asimov), que usava como um espécie de escudo protetor. Se eu ou algum de nossos colegas de turma se aproximava, ele baixava os olhos, fingia estar concentrado na leitura, e desencorajava quem tentasse invadir seu território. Nunca de forma grosseira, contudo. Apenas se encolhia, sempre de forma discreta, com um meio sorriso enigmático.
“Quando Ramiro me contou de sua família, e com seu forte sotaque, deixou escapar que não sabia se o pai estava vivo ou morto, eu, ingênuo e curioso, quis saber por quê. Ele preferiu não responder, mas não desviou o olhar.”
Seus olhos contradiziam essa postura algo refratária. Estava sempre atento, eu percebia, e dava sinais de ter interesse no que conversávamos. Ria sem jamais gargalhar ou se manifestar, como se entendesse tudo pela metade, mas desejasse, a sua maneira, participar da conversa. Parecia querer dizer: “Eu estou aqui”. Ramiro me intrigava em sua reticência. Gostava, por alguma razão, de tê-lo por perto, ainda que eu não tivesse muita certeza se ele queria ou não a minha amizade.
Era 1974, o Brasil vivia o auge da ditadura militar e nenhum de nós entendia muito o que a presença daquele garoto entre nós significava. Só fui, de fato, compreender o que a palavra “exílio” queria dizer meses mais tarde, quando nos tornamos mais próximos e ele me contou, no caminho de volta a Copacabana, que ele morava em um apartamento de quarto e sala, com a mãe e as duas irmãs mais velhas, com quem viera do Chile – o pai havia desaparecido. Não compreendi muito bem na hora muito o que ele queria dizer. Precisou ser mais claro.
A essa altura, embora não tivéssemos nos tornado exatamente amigos, estávamos mais à vontade um com o outro. Eu, ele e mais dois colegas, dois irmãos cearenses chamados Douglas e Salvador, que também moravam no bairro, compartilhávamos o mesmo transporte escolar: uma Variant azul, que nos deixava em frente de nossos respectivos prédios ao fim do dia. Por conta do trânsito intenso, muitas vezes já havia anoitecido
Quando Ramiro me contou de sua família, e com seu forte sotaque, deixou escapar que não sabia se o pai estava vivo ou morto, eu, ingênuo e curioso, quis saber por quê. Ele preferiu não responder, mas não desviou o olhar. Faltava segundos para ele descer do carro. Poucas vezes vi uma tristeza tão abissal e definitiva em minha vida. E, percebi, que ele havia dado um passo à frente, e me estendido a mão, ainda que simbolicamente, à sua maneira.
No rádio da Variant, Hyldon cantava, pela segunda ou terceira vez desde que tínhamos saído do colégio: “Jogue suas mãos para o céu, e agradeça se acaso tiver, alguém que você gostaria que estivesse sempre com você, na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapê”.