Às vezes tenho a sensação de estar sendo seguido. Percebo, com o canto dos olhos, uma sombra cujos traços não consigo identificar com exatidão. Mas sinto essa proximidade, fantasmagórica em sua imprecisão, ao mesmo tempo assustadora e reconfortante. A quase presença que me persegue, afinal, não deixa de ser um atestado de vida. Existo, logo ela está de alguma forma sempre ali, mesmo quando não passa de um rastro. Um vulto à espreita.
O olhar desse ente imaterial me inquieta, porque inspeciona, vasculha meus dias, calculando cada passo. Nunca se aproxima ao ponto de me tocar. Talvez não precise. Parece adivinhar, entretanto, o que estou a pensar, tateando meus desejos, quando ainda são segredos inconfessos, mistérios até para mim. E me interroga em silêncio, ecoando perguntas como um sonar, cujas vibrações entram, sem pedir licença, em minha cabeça. Um telepata perverso, que tento, em vão, ignorar.
“Ele me investiga com o rigor do inspetor de minha escola na infância, em busca de pequenos deslizes, pecadilhos cometidos na ânsia de viver sem muito pensar, de transgredir para testar meus limites.”
O que fazer com esse duplo, com a porção do que sou e quase sempre me escapa, apesar da proximidade invasiva? Ele me investiga com o rigor do inspetor de minha escola na infância, em busca de pequenos deslizes, pecadilhos cometidos na ânsia de viver sem muito pensar, de transgredir para testar meus limites. Ele, não. Pensa, questiona, corrige e também arrepende-se. Então foge, se esconde por algum tempo, em, talvez, um pedido simbólico de desculpas. Aparenta cansar-se de mim. Nesses momentos, eu voo, livre e aliviado, fingindo que ele nunca existiu e não voltará. Preciso, afinal, dessa verticalidade redentora.
Mas um dia acordo, tomo café apressado, desço os degraus da escada de meu prédio e, quando piso na calçada, o vejo do outro lado da rua, escondido por entre as folhas da copa de uma árvore. Imóvel e absoluto, para me lembrar que estou de volta à Terra. Há uma breve troca de olhares, respiro fundo, tento esboçar um sorriso e o convido, ainda que inconscientemente, a me seguir dia adentro.