Afiada, a lâmina perfura a carne vulnerável do homem e, por ironia, traz em seu fio uma espécie de poder ambíguo: pode tanto matar quanto fazer nascer um mártir, cumprindo ou não sua missão de imolação pública. “Foi a pedido de Deus”, justificou o autor do crime, encolhido, em uma pequenez que parece ter sido sempre sua. A afirmação faz sentido na lógica alterada de alguém que resolveu trazer para suas mãos não apenas o destino de sua vítima, mas, também, a narrativa de um país, inesperadamente alterada. Não se sabe agora em que direção.
O gesto que colocou a faca em movimento veio carregado de uma história nebulosa que ainda não conhecemos tão bem. Mas já sabemos que sua trajetória é errática, à deriva, e de um cidadão que não encontrou seu lugar no mundo, vagando até cumprir seu destino: misturar-se à multidão, fingir idolatria, simular uma fé que não sentia, e tentar derrubar o algoz do pedestal. Estilhaçar, como um iconoclasta, o mito que, em seus delírios, o ameaçava.
Afiada, a lâmina perfura a carne vulnerável do homem e, por ironia, traz em seu fio uma espécie de poder ambíguo: pode tanto matar quanto fazer nascer um mártir, cumprindo ou não sua missão de imolação pública.
Perfurou, feriu, mas seu ato não se consumou como o sacrifício que almejava. A vítima, cujo martírio foi eviscerado em detalhes para deleite dos instintos mais mórbidos, de certa forma agora se alimenta com sagacidade do metal frio que o cortou. Ele o potencializa como uma espécie de amuleto, ou troféu. No melodrama de nossa alma latino-americana, o sofrimento, afinal, é sempre protagonista. A agonia deu ao que se pretende mito capítulos inteiros de uma novela em rede nacional da qual participava em poucas cenas, por alguns tímidos minutos.
Dos dois lados dessa história, transbordam cegueira, e diferentes espécies de insanidade. Certezas transfiguradas em discursos de fé que ferem, literal e figurativamente. A carne do homem e suas entranhas, em um extremo, e a dignidade de um povo, e seus direitos à diversidade e à liberdade, no outro. A violência na ponta das lâminas que ambos portam alimenta a arquitetura da destruição a que estaremos condenados se não jogarmos fora, o mais rápido possível, as armas e repensarmos nossas escolhas.