B. sempre gostou de sentar-se próximo à janela de seu apartamento, e observar o movimento. Pedestres apressados, olhos na calçada, ou na tela do celular, alheios a sua presença. Nesses momentos, sentia-se um pouco espião, a vigiar sem pedir licença. Havia também, contudo, os vizinhos, alguns do seu próprio prédio, outros das redondezas, que sempre passavam, muitas vezes nos mesmos horários, com seus cães, muitos soltos a farejar cada centímetro quadrado da calçada, procurando novos e velhos odores, mordiscando plantas que brotavam do cimento para desafiar a lógica do concreto e colorir a paisagem.
Muitos dos donos dos cachorros notavam que B. estava ali, a observá-los, e alguns chegavam a cumprimentá-lo com acenos, sutis movimentos com a cabeça, por vezes acompanhados de sorrisos mais ou menos tímidos. Embora não conseguisse ouvir, lia um “Olá” ou um “Bom dia!” nos seus lábios, que se moviam quase sempre com timidez. A sensação de ser percebido, em sua rotina de observação, não o incomodava. Pelo contrário: sentia-se menos só, e parte de uma comunidade, que talvez não se percebesse como tal, mas compartilhava pequenos gestos de cordialidade.
De uma certa forma, B., do alto de sua torre inventada, sentia-se um pouco intocável, protegido pelas barreiras físicas de tijolos, vidros e esquadrias de alumínio. Ali, mantinha-se refugiado, à meia-luz. Ao mesmo tempo, quando acomodava-se na velha poltrona verde, sua favorita porque já amoldada a seu corpo, ele sentia-se como um farol à beira de um imenso mar de possibilidades, de histórias por vezes fragmentadas, inconclusas, que vinham e iam como ondas, a provocar-lhe a imaginação, o iluminando e dando-lhe elementos para que inventasse tramas. Quem B. via a passar, com mais ou menos pressa, só ou acompanhado, tornava-se, sem saber, seu personagem.
Já vira brigas de casal, beijos roubados e mãos se entrelaçando, socos e pontapés literais e simbólicos, loucos arrancando plantas e galhos de árvores, pessoas falando sozinhas, e chorando sem qualquer pudor. Ouvira gritos, mas também sussurros, muitos deles ensurdecedores em sua intensidade contida. Chegou a pensar em anotar essas cenas que desfilavam diante de sua janela, mas se deu conta que estaria, daí, criando um método, que talvez quebrasse a magia do inusitado, por mais previsível que fosse.
Já vira brigas de casal, beijos roubados e mãos se entrelaçando, socos e pontapés literais e simbólicos, loucos arrancando plantas e galhos de árvores, pessoas falando sozinhas, e chorando sem qualquer pudor. Ouvira gritos, mas também sussurros, muitos deles ensurdecedores em sua intensidade contida.
De vez em quando, B. cansava-se da rotina de assistir ao mundo como se fosse um filme e levantava-se da poltrona verde, desbotada pelo sol. Calçava sapatos confortáveis, algo esgarçados, desligava todas as luzes do apartamento e saía. Preferia fazer isso ao entardecer, quando o céu se tingia de cores dramáticas e uma brisa leve, quase imperceptível, fazia rolar as folhas na calçada, anunciando a lenta chegada da noite. Por vezes, B. era atropelado pelos cães que via lá de cima e pareciam reconhecê-lo, cheirando seus pés, esfregando-se em suas pernas enquanto ele fazia o caminho de seus personagens, com quem ousava trocar olhares cúmplices, sorrisos furtivos e cumprimentos quase sussurrados, senhas de uma quase intimidade.
Nos dias em que arriscava sair da posição de espectador, B. fazia questão de passar diante de sua janela, como se estivesse em busca do próprio olhar, para fazer-lhe companhia. Ao deslocar-se de sua posição mais habitual, e colocar-se a ouvir passos, buzinas, motores de carros, vozes, latidos e silêncios tão de perto, emergia de si mesmo e inseria-se nos enredos que imaginava para os outros. Estava, dessa forma, mais próximo daquele que observava, agora lá e cá. Estava em movimento na trama do mundo.