Dia desses, na seção de biografias em minhas estantes de livros, reencontrei Palimpsesto – Memórias, obra na qual, ao longo de 432 páginas, o escritor Gore Vidal, de livros importantes como Criação e A Cidade e o Pilar, conta com sua habitual elegância e ironia episódios de seus primeiros 39 anos de vida.
Sem resvalar na nostalgia – mal do qual, ao contrário de mim, ele diz não sofrer –, Vidal, um dos meus favoritos na juventude, traça um painel fascinante do cenário cultural, social e político nos Estados Unidos até meados da década de 1960. O livro, no entanto, também é uma tentativa do escritor de passar a sua história a limpo. Isso fica claro a partir do próprio título escolhido: Palimpsesto, pergaminho antigo usado mais de uma vez, mediante raspagem do texto anterior.
O livro, no entanto, também é uma tentativa do escritor de passar a sua história a limpo. Isso fica claro a partir do próprio título escolhido: Palimpsesto, pergaminho antigo usado mais de uma vez, mediante raspagem do texto anterior.
Ao invés de fazer um relato linear e cronológico, Vidal constrói um texto que parece ter o firme propósito de fazer uma re-visão (literalmente, ver de novo) dos acontecimentos e experiências relevantes que vivenciou quando jovem. Confirma, ao longo da autobiografia, uma característica bastante evidente tanto em sua obra ficcional como nos seus ensaios: o escritor estava muito longe de ter um espírito, digamos, conciliador, e não poupa ninguém. Nem a si mesmo.
Família
Nascido Eugene Luther Vidal Jr. em 1925, o autor veio ao mundo no que convencionou chamar de “berço de ouro”. Filho de famílias tradicionais – dos dois lados –, conheceu desde muito cedo poder, ostentação e hipocrisia.
Capítulos separados são dedicados a quatro figuras-chave dentro de sua família: a mãe Nina, o pai Gene, e os avós maternos, o senador T. P. Gore e sua esposa Nina Kay. A única que não merece qualquer piedade é sua mãe.
Descrita como uma desequilibrada neurótica que o atormentou o quanto pode, Nina Gore parece ter sido uma das grandes pedras nos sapatos do escritor. A relação tortuosa e nem um pouco afetiva entre mãe e filho chegou à troca explícita de baixarias quando Vidal, já um jovem e aclamado escritor, mereceu a capa da revista Time.
Descontente com a glória de quem a rejeitara, Nina disparou uma carta longuíssima para a publicação, discorrendo sobre as inúmeras falhas de caráter do filho. A lavagem de roupa suja foi tanta que apenas um parágrafo da missiva foi publicado sob o sugestivo título de “Amor de Mãe”.
Vidal, que morreu em 2012, não escreve sobre o resto da família com o mesmo ressentimento. Seus comentários sobre o avô, o democrata T. P. Gore, primeiro senador eleito pelo estado de Oklahoma, não chegam a enaltecê-lo, mas lhe reservam um tom de admiração e carinho. O capítulo vale pela sintética e ao mesmo tempo esclarecedora reconstituição da trajetória política do senador. O escritor, na tentativa de seguir os passos do avô, arriscou algumas vezes uma carreira política. Não obteve sucesso.
Igualmente carinhoso é o capítulo dedicado a Dot – apelido da avó Nina Kay. Vidal parece lembrar com especial apreço um episódio em que Dot se recusa a deixar a filha Nina entrar na mansão da família, onde o jovem escritor havia se refugiado depois de fugir de casa.
Quando fala do pai, o aviador Gene Vidal, o escritor também não esconde a sua admiração, mesmo quando afirma que era um homem sem muito pulso, mais voltado a suas paixões pessoais. Ousado, Vidal, que era gay, mexe com um assunto perigoso ao levantar a hipótese de que Gene poderia ter vivido um caso homossexual na adolescência.
Intrigas
Personagens célebres como o primeiro casal John e Jaqueline Kennedy, ou escritores Anaïs Nin, Tennessee Williams e Jack Kerouac, desfilam pelas páginas da autobiografia de Vidal, em situações e papéis no mínimo curiosas.
Num verdadeiro jogo incestuoso, é atribuído ao presidente Kennedy – cuja reputação de atleta sexual já foi cantada em verso e prosa – um caso com a irmã da esposa, Lee Radzwill. Por vingança, Jackie teria ido parar na cama do cunhado Bobby Kennedy. Se esta história é verdadeira ou não, ninguém sabe. Mas o fato é que Vidal pode ser considerado uma fonte confiável porque, além de ter livre trânsito em “Camelot” (como a Casa Branca era conhecida na era Kennedy) o ex-padrasto do escritor, Hugh Auginloss Jr., casou-se com a mãe de Jackie, Janet Lee Bouvier. O autor, portanto, tinha livre acesso a informações mais do que confidenciais.
Em Palimpsesto, Vidal também aproveita para ajustar contas com desafetos do passado. Enquanto o dramaturgo Tennessee Williams merece comentários de certa forma ternos, que denotam admiração, o escritor não dá à autora francesa Anaïs Nin o mesmo tratamento.
A libidinosa escritora de Delta de Vênus é literalmente desancada por Vidal, que a acusa de ser uma espécie de personagem de si mesma e inventar muitos de seus mirabolantes casos eróticos-existenciais. Além disso tudo, o autor afirma com todas as letras que ela nunca passou de uma escritora medíocre e oportunista. Detalhe: Vidal e Anaïs foram muito próximos durante anos.
Quanto a Karouac, pai da Geração Beat e autor do romance cult On the Road, as memórias de Vidal vão direto ao assunto: os dois escritores teriam passado momentos “muito agradáveis” na cama.
Amor
Comparando-se a John Kennedy e a Marlon Brando, Gore Vidal, nada modesto, revela que foi um verdadeiro colecionador de aventuras sexuais. Com menos de 30 anos, diz ele, já havia contabilizado mais de mil amantes, quase todos homens. Em Palimpsesto, o ator garante que sempre soube separar amor de sexo. Tanto que aponta como o segredo da longevidade do relacionamento que manteve por quase meio século com seu companheiro Howard Auster a ausência total e completa de qualquer envolvimento erótico.
Num dos capítulos mais comoventes do livro, contudo, ele revela seu lado mais vulnerável ao falar de Jimmy Trimble, um ex-colega de colégio na adolescência, morto aos 19 anos em Iwo Jima, no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial.
Juntos, Gore e Jimmy descobriram o sexo. A experiência foi tão intensa que serviu de inspiração para o romance A Cidade e o Pilar, sucesso de vendas que provocou escândalo ao ser lançado nos Estados Unidos, em 1948. O título Palimpsesto, neste caso, faz mais sentido do que nunca. Ao tornar pública as história dessa paixão, Vidal passa a limpo sua dor maior, que – segundo ele mesmo dizia – o acompanharia até o fim de seus dias.