No filme Corpos Celestes, em cartaz desde a semana passada em Curitiba, o protagonista, um astrônomo chamado Francisco, tem um encontro definitivo em sua infância no interior do Paraná. Conhece um piloto norte-americano, veterano da Guerra do Vietnã, que ensina a ele o que sabe sobre os mistérios do universo. É um homem culto e sensível, que se encanta pela curiosidade viva e pela sede de conhecimento do garoto.
Essa atenção dedicada pelo piloto-astrônomo Richard a Francisco terá enorme impacto sobre os caminhos que a vida do menino irá trilhar. Sem a intenção, tampouco a estrutura emocional, para se tornar um mentor, o americano acaba desempenhando esse papel mesmo assim.
Do lado de cá da tela, muitos de nós temos a sorte, ou a oportunidade, de conhecer, ainda que por pouco tempo, pessoas que acabam causando enorme impacto e que, de certa forma, acabam por colar em nossa história para sempre. Não é algo excepcional, penso, mas um acidente natural decorrente da condição de estar vivo. Somos seres sociais e, portanto, um pouco a soma das histórias que compartilhamos com outras pessoas ao longo da vida.
Menino ainda, aos 11 anos, tive o privilégio de ver entrar na minha vida não um piloto com conhecimentos de astrofísica, ou um professor daqueles capazes de fazer os alunos subirem no tampo da carteira e gritar os versos de “Oh Captain, My Captain!”, poema de Walt Whitman, como os alunos do professor de Literatura vivido por Robin Williams em A Sociedade dos Poetas Mortos. Mas uma menina da minha idade, uma colega de colégio que ganharia lugar especial – e definitivo – em minha memória afetiva.
O outro, que tanto pode ser um adulto experiente, cheio de conhecimentos, ou alguém mais jovem, mas que chega na hora e no momento certos, tem o poder de legitimar o mais bonito dos anseios humanos, o de criar laços, de escrever histórias conjuntas e de não ser só.
Leitora ávida e autora das melhores redações da classe, ela me contava, com os olhos sempre brilhantes, dos livros que passavam por sua cabeceira. Muitos deles eram volumes de bolso publicados pela Editora de Ouro (hoje Ediouro), na maior parte clássicos da literatura mundial, como O Morro dos Ventos Uivantes (de Emily Brontë) ou David Copperfield (de Charles Dickens), adaptados para iniciantes por grandes nomes das letras brasileiras, como Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Clarice Lispector. Também não faltavam títulos da hoje clássica Coleção Vagalume, da Editora Ática. Assim, meu gosto pela literatura, já despertado na infância pela obra de Maria José Dupré e de Monteiro Lobato, se instalou em definitivo.
Também falávamos sobre filmes, eu e minha amiga, Muitos deles talvez fossem adultos demais para nossa idade, como Dersu Uzala, clássico de Akira Kurosawa realizado na União Soviética, aos quais assistíamos, acho que nunca juntos, com a mesma sede juvenil com que escrevemos um livro a quatro mãos nas escadarias da escola. Não me lembro mais sobre o que era o tal romance – fruto de imaginações jovens e férteis, provocadas pela literatura e o cinema –escrevinhado em paginas de um caderno.
O fato é que, transcorridas mais de três décadas desde aqueles bons tempos colegiais, retomei há alguns meses o contato com essa personagem extraviada de minha história. Esse reencontro tem reavivado algumas lembranças muito especiais desse período, em sessões virtuais de nostalgia via Facebook, das quais têm participado outros colegas da mesma época.
Como no garoto Francisco de Corpos Celestes, acho que há em quase toda criança o desejo de descobrir, de aprender, de se conectar com o mundo. O outro, que tanto pode ser um adulto experiente, cheio de conhecimentos, ou alguém mais jovem, mas que chega na hora e no momento certos, tem o poder de legitimar o mais bonito dos anseios humanos, o de criar laços, de escrever histórias conjuntas e de não ser só. Acho que foi esse o melhor presente, e pelo qual sempre serei grato, que essa amiga de infância sem querer me ofertou: a descoberta de que eu não estava mais sozinho no universo.