Eu deveria ter lá meus 14, 15 anos, no máximo. À época, meu tio Júlio, irmão mais novo de minha mãe, fazia a produção local de shows realizados em Curitiba, quase todos no grandioso palco do Teatro Guaíra, que para mim parecia (e ainda parece) ser uma espécie de templo sagrado. Ele trouxe à cidade, entre outras atrações, o antológico Transversal do Tempo, espetáculo de Elis Regina, e também Seu Tipo, baseado no álbum homônimo de Ney Matogrosso, lançado em 1979. O cantor já era um astro da música brasileira, que havia sido revelado ao país no início da década de 1970, em pleno regime militar, quando fazia parte dos subversivos Secos & Molhados.
Como já tinha deixado escapar que tinha vontade de estudar Jornalismo, e gostava muito de música, consegui participar, como ouvinte, de uma entrevista concedida por Ney em sua suíte no Hotel Mabú, situado a poucos metros do Guaíra, na Praça Santos Andrade. Lembro que foi em uma fria tarde de sábado e eu estava bastante gripado. Mas não hesitei diante da oportunidade. Entre tossidas e espirros, acompanhei os repórteres ao apartamento do cantor.
Meu primeiro choque foi, em menos de dez minutos de entrevista, perceber que o Ney Matogrosso que estava diante de mim, e era entrevistado pela imprensa local, tinha pouco ou nada a ver com a imagem que dele eu havia construído desde a explosão do primeiro LP de sua banda, que superou um milhão de cópias em 1973, com um repertório impecável: além do hit “O Vira”, emplacou outros clássicos como “Rosa de Hiroshima”, poema de Vinicius de Moraes musicado por Gerson Conrad, integrante da banda, e “Sangue Latino”, de João Ricardo, também do grupo, e Paulinho Mendonça.
O homem, então com um pouco menos do que 40 anos, que estava ali, sentado na minha frente, em uma poltrona, com as pernas cruzadas, e pés descalços, não correspondia à figura provocativa e ambígua que imaginava ser. Tinha uma fala pausada, em tom reservado, quase hesitante, apesar de enfático em alguns momentos. Não parecia dizer mais do que o necessário para expressar seus pontos de vista, e falar de sua arte.
O homem, então com um pouco menos do que 40 anos, que estava ali, sentado na minha frente, em uma poltrona, com as pernas cruzadas, e pés descalços, não correspondia à figura provocativa e ambígua que imaginava ser. Tinha uma fala pausada, em tom reservado, quase hesitante, apesar de enfático em alguns momentos. Não parecia dizer mais do que o necessário para expressar seus pontos de vista, e falar de sua arte. Lembro que comentou sobre processo de abertura política, do retorno dos exilados e muito foi perguntado em relação ao fato de estar na capa de Seu Tipo de jeans e camiseta cavada. Básico, sem qualquer maquiagem, uma de suas marcas registradas desde os tempos de Secos & Molhados. Era um Ney Matogrosso clean. No palco, contudo, ele fez questão de enfatizar, seria “outra história”. O que pude comprovar mais tarde na apresentação, arrebatadora.
No repertório de Seu Tipo, além da faixa-título, de Eduardo Dussek, figuram grandes canções da MPB, como “Falando de Amor”, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, e também composições de talentos femininos emergentes naquele início da década de 1980, como Fátima Guedes (“Dor Medonha”) e Joyce (“Ardente”). Além de uma nova gravação de “Rosa de Hiroshima”.
Foi então que, por mais envolvido que eu estivesse pela conversa toda, tive um acesso de tosse, que tentei de todas as formas conter, sem muito êxito. Senti-me mortificado: se pudesse saltar a janela, o faria sem hesitar. Sabia que estava atrapalhando, mas não tinha muito como me levantar e sair do quarto. Ney, então, percebendo meu embaraço, se levantou da poltrona, foi até a mesa de cabeceira e veio até mim, com um estojo metálico contendo pastilhas verdes para garganta. “Respira fundo, que passa…”, disse com um quase sorriso.
E continuou a responder às perguntas.