Um dos meus textos favoritos do austríaco Joseph Roth chama-se “O Homem da Barbearia”. Incluído no livro Berlim, reunião de seus escritos para veículos da imprensa alemã entre as décadas de 10 e 20, integrante da coleção Jornalismo Literário, publicada no Brasil pela Companhia das Letras, a crônica é um dos relatos mais pessoais e contundentes que já li sobre os anos que antecederam a ascensão do Partido Nacional Socialista, durante a República de Weimar, após o término da Primeira Guerra Mundial.
Roth, então com pouco mais de 20 anos, conta uma experiência traumática que viveu em uma barbearia berlinense, durante uma tarde de verão quente e sufocante. Enquanto aguardava a vez de ser atendido, o autor ouve, aturdido e perplexo, o discurso inflamado de um dos fregueses, oriundo da classe operária, mas agora abastado o suficiente para se orgulhar da fortuna que suou para juntar.
O escritor o descreve como “um senhor arruivado”, “pescoço de touro, belicoso”, cujas palavras “estalam, estrondeiam, repercutem.”
“Baterias, morteiros, rifles, metralhas são cuspidos de sua laringe.” Assim Roth, que jamais ousa interagir com o homem, sente na alma a fala do sujeito, impregnada de nacionalismo e ressentimento, conclamando à guerra em nome da pátria.
Judeu e imigrante, o escritor percebe nas entrelinhas de seu personagem algo muito ameaçador que, aos poucos, nos anos que se seguiram àquela cena, sairia do ovo como uma serpente que poderia morder, envenenar alguém como ele. A barbearia, enquanto ele aguardava, havia se tornado o microcosmo de uma Alemanha com intensas tensões sociais em estado de fermentação.
Nesta semana, o fantasma de Roth, que morreu em Paris em 1939, aos 45 anos, consumido pelo alcoolismo, me fez uma visita inesperada.
Era minha vez de estar na cadeira do barbeiro, não na Berlim caótica e efervescente do início dos anos 20, mas na Curitiba de agosto de 2012.
Com o rosto coberto de espuma, sentindo na pele do pescoço a lâmina da navalha, ouvi um homem de meia-idade, sentado ao meu lado, fazer comentários que também me deixaram desconsertado, ao ponto de frases e imagens presentes no texto de Roth eclodirem em minha memória.
Com o rosto coberto de espuma, sentindo na pele do pescoço a lâmina da navalha, ouvi um homem de meia-idade, sentado ao meu lado, fazer comentários que também me deixaram desconsertado, ao ponto de frases e imagens presentes no texto de Roth eclodirem em minha memória.
Sobre a atuação do ministro Joaquim Barbosa, relator do processo de julgamento dos envolvidos no Caso do Mensalão, atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal, o homem disparou: “Quem diria que um negão de toga faria o que está fazendo! Colocaria ordem na casa!”.
Em um primeiro momento, cá com meus botões, dei ao homem o benefício da dúvida. Talvez, apesar do tom depreciativo usado para se referir à cor da pele do ministro, ele estivesse a revelar, ainda que inconscientemente, sua perplexidade: afinal, no Brasil, os mecanismos sociais vigentes há séculos, muitos deles ainda em pleno vigor, conspiram para que negros não alcancem posições sociais mais elevadas.
Mas seu tom era jocoso, de desdém, confirmei instantes mais tarde, quando suas “baterias, morteiros, rifles, metralhas” estalavam no ambiente, contaminando o ar. Entre uma pérola e outra, disse que o “grande culpado” do atual estado de coisas no Brasil, referindo-se ao que ele chamou de “corrupção patrocinada pela esquerda”, era João Baptista Figueiredo, que “teria permitido que toda essa cambada voltasse ao país”. Falava da Lei de Anistia, nome popular da Lei N° 6.683, promulgada pelo general, então presidente da República, em de 28 de agosto de 1979.
Diante dessa performance infame, desse pesadelo matutino – eram 9h40 de uma manhã de fim de inverno –, evoquei Roth, como uma prece: “ele é severo consigo mesmo para ser violento com os outros. Corre para fustigar os outros. Frita para cozinhar os outros. Quer guerra para ver os outros morrerem”.