Uma artrose no joelho direito limitou a mobilidade de meu pai, que acaba de completar 81 anos. Após algumas consultas com um ortopedista muito atencioso, algumas tentativas de tratamento com infiltração, que não surtiram grande resultado, o veredito final não foi dos mais animadores: apenas um implante de prótese teria alguma chance de devolver-lhe plenamente o movimento da perna. Acontece que um procedimento cirúrgico dessa dimensão exige anestesia geral, algo pouco aconselhável a um octagenário – ele já se conformou com a ideia de conviver com a limitação, que começou a se instalar há alguns anos.
Este, contudo, não é um texto para falar de ortopedia, mas sim de território. Leonino exemplar, Roberto, de quem herdei meu nome do meio, viveu por quase 30 anos em Ilhéus, no litoral sul da Bahia. Até a artrose agravar-se, tinha o hábito de caminhar dez quilômetros diários pelas areias das paradisíacas praias cercadas de coqueiros da terra de Jorge Amado. No caminho, uma cerveja aqui, uma caipirinha ali, e muita conversa com os amigos e conhecidos que conquistou ao longo do tempo. Mas seu corpo resolveu trai-lo.
Quando as dores no joelho se tornaram difíceis de tolerar, passou a fazer o trajeto com menos frequência, até trocar os pés pelo carro. Um dia acabou desistindo de seu ritual de mar, areia e conversa. Ficou um pouco mais triste. Viu seu território, antes tão amplo, reduzir-se a sua rua, à casa onde morava com a companheira, Regina, que partiu inesperadamente após uma cirurgia malsucedida de apêndice em 2017. O rei leão viu-se só em seu castelo, pouco antes de completar 80 anos. A praia, a poucas quadras da casa que eles foram construindo aos poucos juntos, fazia agora pouco ou nenhum sentido, tornou-se grande demais. Tudo ficara, de repente, vasto demais, sobretudo sua solidão. Mudou-se para Curitiba, a meu convite.
Como não consegue percorrer longas distâncias, no máximo uma ou duas quadras de uma vez só, o território de Roberto em Curitiba é um pedacinho do Centro. Vai ao mercadinho, onde faz compras da casa, à lotérica, na qual tira o extrato de sua aposentadoria, ao barbeiro, onde corta os cabelos e as unhas, a uma pastelaria. Lá ele se senta para comer seu quitute favorito e tomar cerveja ou conhaque, nos dias mais frios, que detesta.
Hoje instalado em apartamento pequeno, confortável, para onde transportou de Ilhéus uma discoteca numerosa, ele passa os dias ouvindo música. “Paixão não se explica”, gosta de dizer, para justificar-se de seu vício. Também gosta de telejornais, programas esportivos e jogos de futebol, torcedor da Ponte Preta, Flamengo e Athletico Paranaense, nessa ordem, que é. Já fez alguns bons amigos em seu novo território: Marcos, o porteiro noturno do prédio onde mora, fã de karaokês, e uma vizinha de rua, Ester, que, fascinada com suas histórias, me confidenciou que tem vontade de reunir as frases dele em um livro. Ela é jornalista como eu.
Como não consegue percorrer longas distâncias, no máximo uma ou duas quadras de uma vez só, o território de Roberto em Curitiba é hoje um pedaço do Centro. Vai ao mercadinho, onde faz compras da casa, à lotérica, na qual tira o extrato de sua aposentadoria, ao barbeiro, onde corta os cabelos e as unhas, a uma pastelaria. Lá ele se senta para comer seu quitute favorito e tomar cerveja ou conhaque, nos dias mais frios, que detesta. Em todos esses lugares, tem o hábito de se sentar sem pressa, trocar um dedo de prosa, soltar suas piadas, contar e ouvir histórias. Talvez para disfarçar a limitação que o impede de caminhar mais longe, nunca deixa de falar de suas longas caminhadas à beira-mar, dos dez quilômetros. É seu rugido.