É um traço da nossa cultura, aqui do lado debaixo do Equador, manter contato visual com as pessoas, e não apenas com quem conhecemos. Olhamos nos olhos, às vezes sem intenção, porque assim percebemos o outro. O que existe por trás desse comportamento? Possivelmente, a origem mediterrânea da matriz de nossa cultura colonizadora, somada às raízes indígenas e africanas às quais se funde, tenha muito a ver com isso, mas não pretendo aqui especular sem tanto conhecimento de causa.
Em 1994, quando participei, nos Estados Unidos, de um programa para jornalistas de países em desenvolvimento, tive aulas inesquecíveis, em Washington D. C., com o antropólogo Gary Weaver, uma das maiores autoridades no mundo em comunicação intercultural. Segundo ele, o que para mim, e outros de meus colegas de turma, era perfeitamente natural, socialmente aceitável, por lá era visto como falta de educação, uma atitude invasiva, algo a ser evitado, portanto.
É um traço da nossa cultura, aqui do lado debaixo do Equador, manter contato visual com as pessoas, e não apenas com quem conhecemos. Olhamos nos olhos, às vezes sem intenção, porque assim percebemos o outro. O que existe por trás desse comportamento?
“Muitos de vocês vêm de culturas do ser, nas quais o que se é, nome, sobrenome, vínculos familiares e sociais, definem o indivíduo. No mundo anglo-saxão e protestante, mais pragmático, cartesiano, por mais multicultural que os Estados Unidos sejam, vale mais o que se faz. É a cultura do fazer”, dizia Weaver, que morreu em 2017. Como não concordar com ele?
Algum tempo depois, quando já estava estagiando, dentro do mesmo programa, no jornal The Plain Dealer, na cidade de Cleveland, em Ohio, resolvi fazer, por conta própria, um pequeno experimento sociológico. Ao descer do metrô, a caminho da redação, localizada à época na principal avenida do centro da cidade, eu parei de me policiar e passei, brasileiramente, a olhar nos olhos. Em princípio, fiquei temeroso que fosse mal interpretado e acabasse encontrando reações de alguma forma hostis. Não foi exatamente o que ocorreu,
Desconcertadas, incomodadas ou, talvez, apenas confusas, as pessoas que eu mirava passaram a me cumprimentar, às vezes com um discreto movimento com a cabeça, ou um esboço de sorriso. Muitos, no entanto, ensaiavam um protocolar “Como vai?”, como se me conhecessem, mas não lembrassem de onde. Eu ria por dentro, me lembrando das aulas de Weaver, que, recordo, nunca havia ouvido falar de Curitiba.
Maior cidade da Região Sul, a capital do Paraná tem lá suas peculiaridades. Está, em certa medida, entre a cultura do ser e do fazer. Se, instintivamente, nós temos o hábito de fitar nos olhos de desconhecido, quem saber de forma mais tímida do que em outros lugares do país, não somos muito afeitos ao cumprimento. Desviamos o olhar, evitamos a pessoalidade.
Há quase um ano e meio morando no Centro, boa parte desse tempo durante a pandemia, tenho vivido, todavia, uma experiência muito interessante, não um experimento, como o que fiz em Cleveland. Meus percursos a pé têm sido bem mais curtos, e repetitivos, pelos mesmos trajetos; farmácia, supermercado, padaria, passeios com o cachorro. Lentamente, os rostos foram se repetindo, as expressões mais fechadas se desanuviando em olhos que sorriem em sinal de reconhecimento, de familiaridade. Não raro, para minha supresa, vêm seguidos de “Bom dia!”, “Tudo bem?”, “Como vai, vizinho?’.
Como não pensar em Weaver?