Cheguei à rodoviária da cidade de P… em 2014, numa quarta-feira à noite. Protejo o nome da cidade como faria Stendhal em proteção a um personagem real que pretendo tratar nessa crônica. Chamarei ele de Georg. Mantive uma comunicação via internet com Georg desde que ele me escreveu oferecendo sua casa para me hospedar em minha visita à República autônoma de Kosovo. Sarcástico e mal-humorado, tinha as feições de um jovem George Harrison. Perguntei quando poderia ir. “Quando quiser. Tanto faz. Agora”, respondeu entre a indiferença e a disponibilidade. Estava na Sérvia, o país inimigo. Para todos os efeitos, a Sérvia ainda entende Kosovo como parte de seu próprio território, ainda que o reconhecimento da soberania do novo país esteja já beirando os 60%. Não sabia como seria pedir uma passagem de ônibus para dentro do Kosovo na rodoviária de Belgrado, mas como qualquer absurdismo previsto por Camus, a rotina continua a acontecer em meio às tensões e guerras. Mandei uma mensagem dizendo que chegaria perto da meia noite, e ele disse que estaria me esperando na rodoviária. Eu acreditei.
Passando pela fronteira mais estranha da minha vida – um container de plástico onde colocam apenas o carimbo de entrada de Kosovo e nunca o de saída da Sérvia, por razões óbvias – percebi que o ônibus parava longe da rodoviária de P…. Entre a rodovia federal e o terminal havia uma distância considerável a ser percorrida por uma rua escura sem calçada. Ninguém parecia querer ir para lá de qualquer forma. Uma pequena multidão de parentes e amigos aguardavam naquele ponto da estrada para recolher os passageiros que chegavam de Belgrado. Georg não estava. Demorei um átimo para perceber que estava sozinho, sem celular e sem mapa em algum lugar de Kosovo.
Não tive muito tempo para me desesperar, entretanto. Subitamente me vi cercado por uns quatro caras enormes que estavam de moletom. Um deles me perguntou em inglês se eu estava sozinho. Eu estava, respondi, pensando que um possível sequestro pelo menos me colocaria sob um teto para passar a noite. Ele então me perguntou de onde eu era, e levantou as duas sobrancelhas quando disse que vinha do Brasil. Então, o óbvio escancarado para todos menos para quem, como eu, já estava pensando nos piores cenários possíveis: perguntou se eu precisava de ajuda. Disse que sim, falei de Georg e nosso combinado malsucedido. Se eu tinha o telefone dele? Tinha, mas estava no chat do celular que dependia de internet para ter as mensagens anteriores carregadas. Nisso outro kosovar grandalhão se manifestou: compartilharia o 3G de seu aparelho para que eu pudesse localizar. No que o primeiro já me ofereceu o próprio telefone para que eu ligasse para ele. Abusando da hospitalidade de beira de estrada e depositando o destino da noite na mão daqueles estranhos, perguntei se não poderia falar com Georg por mim, sendo a língua em comum um facilitador. Ele sorriu e discou o número que lhe passei. “Seu amigo está bêbado num bar do centro. Vamos, a gente te leva lá”. Sem titubear, entrei num sedan velho cujo modelo desconheço com quatro sujeitos que nunca havia visto na vida e que colocaram minha bagagem no porta-malas com gentileza. No carro, lembrei de agradecer por toda a ajuda. “Você é brasileiro, a gente não vai te deixar aqui sozinho de jeito nenhum”, o motorista respondeu. Não entendi se era preocupação individual ou cortesia estendida a todos da nação, mas agradeci mais uma vez.
***
Georg me esperava com um copo de rakia na mão num bar-café que pertencia ao primo dele, um haji que, descobriria depois, era um dos principais traficantes de droga da região. Com um canino a menos, magro, de olhos e cabelos claros, o raji não falava nenhuma outra língua além do albanês, mas dava uma sambadinha quando me via, e dizia “Brasilll” com um tom de malícia, talvez sendo transportado em sua imaginação para a afamada beleza da mulher da terra. Ainda durante a minha estada, ele iria me dar carta branca em seu café para que eu bebesse e comesse de graça sempre e tentaria estabelecer alguma rota comercial de café comigo, reclamando do preço do café em Kosovo. Ainda me lembro daquele traficante de drogas muçulmano que deixou que eu me embebedasse de rakia durante as tardes em seu café.
Foi só nessa hora que me lembrei que meus tênis e meias estavam completamente encharcados pela chuva violenta que acometeu Belgrado na minha partida.
Georg, por sua vez, me puxou pelo braço em direção a sua casa, dizendo que estava me esperando (mas não no lugar em que combinamos, embora a respeito disso não tenha se explicado nem se desculpado em nenhum momento) para que a gente pudesse ir a uma festa. No alto de um morro, sua residência era enorme e estava extremamente bagunçada, com garrafas de bebida e cinzeiros cheios espalhados por todos os lados. Ele disse para que eu não reparasse na bagunça. “Teve uma orgia ontem aqui e eu não tive tempo de limpar”, admitiu de maneira estressada, e pediu para que eu não contasse a seu primo ou a seus amigos que era gay, porque isso ainda era “um problema em sua vida”. Foi só nessa hora que me lembrei que meus tênis e meias estavam completamente encharcados pela chuva violenta que acometeu Belgrado na minha partida. Disse que só precisava de uma coisa antes de sairmos para a tal festa. “Precisa de uma coisa? De quê? De tomar banho? Não me diga que você é uma dessas pessoas que precisa tomar banho antes de sair de casa!”, começou a bufar de raiva meu anfitrião. Depois soube que o estresse dele se devia ao fato de que não havia água nas casas kosovares durante a noite. O registro da cidade era ligado de dia e desligado por volta das oito. Eu pedi sapatos emprestados porque precisava deixar os meus secando, e foi dessa maneira que me dirigi a uma festa underground kosovar com sapatos sociais dois números menores que meus pés.
O lugar – uma casa que fazia as vezes de balada, mas que sem dúvidas era a morada de alguém – era dos mais deprimentes. A diminuta pista de dança esvaziada de pessoas foi completamente ocupada por Georg que, mal conseguindo ficar de pé, cambaleava para frente e para trás com uma cerveja na mão olhando para o DJ, por sua vez compenetradíssimo na função, a despeito da falta de público. Georg não parava de beber e insistia para que eu bebesse também. “Não se pode ficar sóbrio em Kosovo”, dizia ele entredentes.
Dentre todas as pessoas que não podiam ficar sóbrias em Kosovo, Georg parecia ser o que menos podia. Jornalista e uma figura semi-midiática, era considerado pelas pessoas da cidade de P… como um pedante babaca e uma pessoa detestável. Fazia textos e matérias atacando o papa Francisco e o Imame Shefqet Krasniqi (acusado mas eventualmente absolvido de encorajar atos terroristas em seus sermões) e não raro recebia ameaças de morte. Fã do estilo mod, do haxixe, da cocaína e da rakia, gostava de estar sempre doido, e um amigo de seu primo me disse que eventualmente trabalhava assim. Vaidoso e com um charme europeu característico – topete, rosto imberbe e dois maços de cigarro por dia inclusos – tinha alguns flertes pela cidade e promovia orgias gays em sua casa. Contou-me que morou por onze meses em uma caverna durante a guerra de Kosovo. Tinha aulas na caverna, comia, dormia, brincava e esperneava na caverna, que era guardada pelo exército civil kosovar. Ensinou-me todo o albanês que sei, com o sotaque distinto do país, bem diferente do albanês da Albânia, conforme descobri quando visitei Tirana. Todos os dias me atualizava do noticiário local, que fervia com a disputa eleitoral presidencial. Um candidato que ameaçava o outro de morte, outro que foi descoberto envolvido com tráfico de drogas internacional, uma mixórdia de fatos escabrosos. Assim parecia ser o dia a dia da república jovem que tentava manejar com mãos inexperientes sua recente democracia.
Poderia contar muitos outros fatos insólitos e episódicos que aconteceram comigo em P…, e talvez ainda o faça. Mas queria falar aqui da hospitalidade kosovar. Deixei P… em uma manhã brumosa, depois de uma bebedeira com Georg, seu primo e seus amigos em sua casa. Tentei acordar um deles, Bess, dando-lhe uma porção de tapas na cara, para deixar a chave à vista, mas ninguém acordou, tamanho o baque do álcool. Eu também não acordaria.