É um menino. Não dá pra chamar de outra coisa. Ele dirige, eu não, por isso é ele quem me leva até o Aeroporto Salgado Filho nessa madrugada de uma segunda-feira pós-feriado. Tento, pela janela, observar mais da paisagem cuja possibilidade de detalhamento me foi roubada pelo curto tempo que passei na capital gaúcha. Quando tenho pouco tempo, busco esses detalhes nas conversas. As pessoas contam de bom grado a vida secreta da cidade e de seus habitantes. Estamos sempre só de passagem, que mal pode haver em levar algumas histórias extras na bagagem?
Passamos por uma porta repleta de mulheres bem produzidas. Pergunto se ali é alguma balada. “Não, pai, aqui é as gurias”, o menino responde. As gurias do Farrapos, bairro em que estou hospedado. Um conhecido ponto de prostituição, eu saberia se tivesse passado mais tempo em Porto Alegre. Faço um meneio de cabeça para dizer que entendi o recado. Ele continua. “Ali mais pra frente tem uma que é muito linda, você vai ver logo mais. É uma loira, fica sempre sozinha, com os peitos de fora e sem cafetão nenhum por perto”, ele continua, talvez interessado por ter me esclarecido algo que eu não sabia sobre a cidade e suas figuras.
Pela descrição, faço as contas de cabeça necessárias para concluir que se trata de uma travesti. Uma travesti provavelmente vacinada contra a violência do cotidiano. Navalha escondida na peruca e coisas do tipo. Mas ele rechaça minha hipótese com veemência. “É uma mulher de verdade”, ele afirma, mais ou menos ao mesmo tempo em que passamos por ela. Ele faz questão de me apontá-la, como uma atração turística da cidade. Olho pela janela. Ela está lá. Cabelo loiro em um corte mais longo estilo chanel, bem anos noventa. Bem faustofawcettiana. Roupas de vinil, botas longas de salto alto e os seios à mostra, empinados contra a bruma do fim da madrugada. Uma paisagem pitoresca e surreal, contrastante com a rua depauperada. Claramente se trata de uma travesti, e talvez ele saiba disso de maneira cônscia, ou talvez seja um desses clientes que se fingem de surpresos na hora, esperneiam e ameaçam.
É um desses homens descritos por Proust, que passam a vida separando o amor do desejo. Morrerá confuso, pensando nas escolhas que tomou na vida?
Pergunto se ele já foi com ela. Ele disse que não, porque é casado. Há quanto tempo, eu quero saber. Desde os dezoito anos, ele diz, como se estivesse falando de eras geológicas atrás. Tem hoje vinte e três, me confessa. Confessa também que ainda está pensando na loira, mesmo sabendo que é errado, e que não poderia fazer uma coisa dessas com a mulher, que é gente boa. Gente boa. Não diz que é bonita ou que a ama.
É um desses homens descritos por Proust, que passam a vida separando o amor do desejo. Morrerá confuso, pensando nas escolhas que tomou na vida? “Vou deixar você ali no aeroporto e depois vou passar aqui na volta para dar mais uma espiada nela”, diz, abrindo sua mais profunda intimidade para um completo estranho. Dizem que os motoristas de uber têm esse poder. Descartam a importância de todos os seus passageiros e sentem-se à vontade dentro de seu próprio carro para fazer do banco do motorista um divã improvisado. O tédio, as horas e o acúmulo de pessoas efêmeras em sua vida.
“Aquela loira tá me instigando”, volta à toada. Fico comovido com a insistência com que aborda a loira. É claro que ela se sabe desejada por quem a procura, mas nem deve imaginar a obsessão de alguns carros que passam e nunca param. A obsessão criadora de coragem. Alguma hora seus pensamentos deixarão pra trás a mulher gente boa com quem divide a vida e fará a abordagem que precisa fazer. Sei disso porque até o momento em que desembarco no aeroporto, mais ou menos na mesma hora que os primeiros raios de sol começam a despontar no céu, ele não teve outro assunto.
Me despeço, desejando boa sorte com a loira, de brincadeira, mas na verdade querendo desejar boa sorte com os demônios com que precisa conviver para lidar com seu desejo extraconjugal, sua sexualidade fluida e não totalmente aceita, sua juventude que muito promete e pouco faz. Sabe o que é certo e o que é errado, o menino. Mas ainda não sabe o que quer. Um dia vai saber. Quando esse dia chegar, a loira ainda estará ali. Bom, não a loira, mas uma loira. Alguém que será as respostas das perguntas que busca em sua vida construída por afirmações. Tem tempo. É um menino.