Como gostava do papagaio, aquela velha! Punha ele na cozinha pra ver a TV e passava a manhã cozinhando o almoço e comentando com ele os programas da manhã. O loro assobiava, esboçava uma palavra ou outra no começo, mas depois passou a decorar frases inteiras com a mesma rapidez em que eram ditas. Só fazia repetir instantaneamente o que a velha dizia, a menos quando usava uma frase anterior para responder algo, aí sim parecia uma conversa. Dançava empoleirado, andava pela casa toda embora tivesse asas para voar, virava a cabeça em sinal de confusão e se agitava quando ela voltava do sacolão, às quartas e aos sábados. Bicho que não balança o rabo eu não sei avaliar direito, mas parecia que o papagaio adorava a velha também.
Começou com essa história de papagaio já tem um tempo. A velha via a loira do programa de culinária que conversava com um fantoche de papagaio e achava lindo, queria ter um. Parecia uma sintonia cósmica, uma ordem do universo que ela devia obedecer: a ligação afetiva entre velhas e papagaios perpassava todas as dimensões do multiverso, menos, é claro, naquele em que os papagaios e as velhas são inimigos mortais e travam uma guerra que já dura séculos. Os filhos achavam caro um papagaio desses – quase vinte mil! –, mas depois que o velho da velha morreu, acharam por bem conceder esse capricho. É bom que faz companhia, disse um deles. O importante é manter a cabeça ocupada, analisou outro, com falsa autoridade, como se tivesse publicado uma pesquisa arrasadora sobre velhos de cabeça desocupada. Cada um deu um pouquinho, menos o caçula que era vagabundo e não tinha dinheiro pra pagar nem o próprio aluguel, e compraram o papagaio. Vai viver mais que ela, sussurrou o caçula na sala escura em que todos se reuniam, depois de ler que os papagaios podiam viver até vinte e cinco anos em cativeiro. Fizeram surpresa. A velha quando viu aquele bicho na sala foi chegando de mansinho com os dedos entrelaçados na altura do peito, admirada e solene, e o saudou pela primeira vez. É o meu bichinho!, exclamou e repetiu muitas vezes, chamando-o sempre assim: o bichinho.
Parecia uma sintonia cósmica, uma ordem do universo que ela devia obedecer: a ligação afetiva entre velhas e papagaios perpassava todas as dimensões do multiverso, menos, é claro, naquele em que os papagaios e as velhas são inimigos mortais e travam uma guerra que já dura séculos.
A partir daí o bichinho era o centro do universo da velha. Se saía com alguma amiga, logo tinha que voltar para casa porque tinha deixado o bichinho sozinho. Obrigava todas as parcas visitas que recebia a contemplar e cumprimentar o bichinho. Era bichinho pra cá, bichinho pra lá, e olha aqui ele cantando a música do Marcha Soldado, fala, bichinho, fala que eu sou linda, a velha implorava, e o papagaio repetia a frase que ouviu excessivamente na intimidade do lar. Você é tãooooo linda, entre uma assobiada e outra. E dançava, pulava e balançava a cabeça conforme as músicas favoritas da velha lhe eram ensinados. Chegou a esquecer o arroz no fogo algumas vezes de tão entretida. A cabeça lá, ocupada.
Foi no tal do almoço de páscoa. Toda a família reunida na casa da velha, que preparou uma porção de bacalhau com batatas e vinho branco, que todo mundo comeu de se esbaldar. O caçula afastou a cadeira para se retirar da mesa sem ver que o papagaio estava no chão atrás dele. Um piado agonizante cortou o bater de talheres da cozinha e num minuto todo mundo se sobressaltou. O estrago já estava feito, abriu-se um buraco na traseira do papagaio, por onde se esvaía o sangue e a vida do coitadinho. Agonizava de barriguinha pra cima, respirando forte, de olho fechado. A velha gritava o bichinho vai morrer, o bichinho vai morrer, ah meu deus, o bichinho vai morrer. Estava inconsolável, mas o que dilacerou mesmo o coração dela foi o bichinho, que pegava rápido as frases no ar. Antes do derradeiro suspiro, repetiu algumas vezes, já fraco, entre um assobio e outro: o bichinho vai morrer, o bichinho vai morrer.