A cronista Marleth Silva disse uma vez que mudar de cidade é como trocar de pele. Especialmente, mudar para uma cidade maior traz a alegoria para mais perto da realidade. Ou pelo menos assim queremos: a vila-exoesqueleto que deixamos para trás ainda pode servir para o corpo dos que ficam, a incerteza de se estar grande para ela até o derradeiro mistério da saída. Do mesmo modo, voltar à cidade que um dia foi tão familiar quanto a própria vida causa um efeito contrário: experimentamos uma roupa que não cresceu como nós. Detalhes que mudam numa paisagem para sempre estática.
Uma rua que muda de sentido, um novo barzinho moderno, o mesmo pé-sujo em frente à mesma igreja. Abriram um shopping novo, mas já não deu certo. A pracinha onde continuam dando os primeiros beijos muitos anos depois da minha partida. Milhares de rostos desconhecidos passando por ruas que posso cruzar de olhos fechados. A normalidade da paisagem estática, os problemas do dia a dia que não precisam mais da minha atenção.
Do mesmo modo, voltar à cidade que um dia foi tão familiar quanto a própria vida causa um efeito contrário: experimentamos uma roupa que não cresceu como nós. Detalhes que mudam numa paisagem para sempre estática.
Em sua tetralogia Napolitana, a escritora italiana Elena Ferrante faz sua narradora, Lenu, sair de sua pequena vila em Nápoles para estudar em Pisa. A personagem então passa boa parte de sua nova vida preocupada em ser identificada como provinciana, pelo dialeto que não pode abandonar por completo, ao mesmo tempo em que procura demonstrar para seus conterrâneos que se tornou uma mulher cosmopolita e bem-sucedida. Enfim, Lenu anseia para que a experiência da mudança transpareça em todos os seus gestos. Deseja distinguir-se de um povo diluído na normalidade para mergulhar em outra diluição, enfim, quando sabe que não será nem mais nem menos do que é: uma mulher do interior morando na cidade grande.
Há, portanto, um deslocamento da própria identidade em uma transação como essa. Comigo a coisa acontece da mesma forma. Volto a visitar as ruas da cidade de onde morei rezando com toda a fé de que disponho para que Heráclito ainda faça sentido. Que Deus não me permita ser o mesmo me banhando nesse rio pela segunda vez. Mas com a minha pele nova, contemplo a velha. Está gasta pelo tempo, mas ainda guarda o meu formato, minhas imperfeições, meus traumas e minha teogonia. Difícil ser turista na própria cidade, mais difícil ainda na cidade onde já morou. Tudo crava referência no passado. Melhor assim, penso. Antes revisitar o nó da estagnação do que perder a referência de vez. Essa rua já foi a minha.