Domingo, sete da manhã. O café coa devagar, apesar dos grãos mais grossos. Aproveito o tempo que a filtragem e a gravidade me dão e começo a colocar as coisas na mochila. Luvas, calção de banho, toalha, protetor solar, charutos, cabos, carregadores, rede de bagagem. A combinação incomum reúne tudo o que vou precisar no dia, que promete calor e desconsidera minha pesada roupa preta de botas e jaqueta de couro. Bebo o café em uma passada irregular. Tenho horário, mas o dia de hoje pede contemplação.
A moto está na garagem. Inteira preta, pesada, com grossas rodas dianteiras e traseiras, uma máquina bruta de desnecessárias mil e seiscentas cilindradas e trezentos e trinta quilos, que recebem sem esforço meu peso e o peso da mochila, que vai amarrada com a rede na garupa. Sinto meu coração bater mais forte quando a vejo por detrás do guidão, o enorme tanque de gasolina entre as pernas, as manoplas pesadas e troncudas, os pedais de comando avançado que colocam meu corpo em uma posição anti-natural em relação às noções de equilíbrio. A terra treme quando dou ignição no motor, e o ronco grave, industrial e apocalíptico corta a tranquilidade da manhã de sol. O chão corre rápido debaixo dos pés e o vento ainda gelado lacrimeja os olhos desprotegidos pela viseira.
A moto está na garagem. Inteira preta, pesada, com grossas rodas dianteiras e traseiras, uma máquina bruta de desnecessárias mil e seiscentas cilindradas e trezentos e trinta quilos, que recebem sem esforço meu peso e o peso da mochila, que vai amarrada com a rede na garupa.
No posto de gasolina, o ponto de encontro, todos já me esperam. Fui um dos últimos a chegar. Todos estão conversando, calibrando os pneus, enchendo os tanques ou beliscando um petisco da loja de conveniências. Outras motos, de pessoas que não conhecemos, também estão se preparando para a viagem. O plano inicial é cruzar a estrada velha de Quatro Barras e descer a Serra do Mar via Estrada da Graciosa. Nada depois disso está decidido. O dia é como a estrada aberta que nos espera.
As estradas são sinuosas e exigem atenção no cálculo das curvas. Entrar em um ângulo diferente ou numa velocidade acima do limite da prudência pode terminar em tragédia. Mesmo assim, todos estão descontraídos. Frequentemente alguém acelera na frente dos outros para esperar o comboio passar diante das lentes de sua câmera. Fotos e vídeos são feitos de acordo com as exigências da paisagem, que se impõe a todo momento de forma renovada diante de nossos olhos, a cada nova curva e ângulo revelado. Os lugares demarcados pelo departamento de turismo de Quatro Barras e Morretes recebem a reverência que merecem de todos nós. Não temos pressa para chegar a lugar algum, o objetivo é aproveitar o trajeto.
Na Estrada da Graciosa, o primeiro mirante é o ponto de parada das motos. Poucas como a minha custom, muitas bigtrails, imensas motos tecnológicas, com conforto garantido e roncos discretos – um contraste gritante diante do pequeno trator do juízo final que conduzo apesar da tremedeira e do peso exagerado. Um pastel é comido diante do turbulento oceano de montanhas que se descortina por entre algumas árvores abaixo de nós. Não fosse o uso constante das máscaras e todos estariam devidamente alienados e abandonados ao ondular da natureza. Todos parecem satisfeitos em seus autoexílios espirituais.
Ao final da descida, um grupo decide ir até Antonina, outro resolve voltar. O passeio até ali já valeu. Faço parte dos que prosseguem na viagem. Na cidadezinha litorânea, o calor é intenso, e assim que achamos lugares para estacionar as motos, trocamos nossas pesadas roupas pretas por ridículos calções de banho estampados com abacaxis, havaianas e personagens do Bob Esponja. O almoço acontece na rua da praia, na Ponta da Pita. Uma cerveja a mais é dividida em copos de plástico com os pés na areia, enquanto acendo um charuto baiano e observo as crianças brincando na água, bem debaixo da advertência de sua inadequação para o banho. A qualidade duvidosa do mar e o limo que boia por cima das marolas não intimida a brincadeira e a gritaria.
A sensação térmica ultrapassa facilmente os trinta graus e decidimos de forma unânime que algo precisa ser feito em relação ao calor. Diante de celulares e dicas dos garçons, passamos a buscar nosso próximo destino: uma cachoeira ou rio sem muita gente em que possamos nos banhar um pouco. Achamos um lugar chamado Rio do Nunes, a vinte quilômetros de Antonina via PR-340, um lugar que parece o verdadeiro inferno na Terra em sua entrada, com carros de som alto, narguiles e gritaria, mas que se torna um recanto paradisíaco conforme acompanhamos o curso do rio acima. Deitamos em uma parte rasa do rio e deixamos que a água gelada refresque nosso corpo acalentado pelo dia por um tempo. Algumas pessoas passam por nós, descendo o rio em grandes câmaras de pneu, mas isso não perturba a paz. A sombra e a água fresca funcionam como remédio contra o exagero do clima. Nenhuma nuvem no céu para nos lembrar da imprevisibilidade do tempo de Curitiba e arredores. Não chove, e preparamos nossa volta.
Depois de um grande engarrafamento na subida da Graciosa e de uma passada no posto para abastecer os tanques exauridos pelo dia e pelas marchas baixas das motos, a chegada na cidade, já à noite, começa a ser as despedidas. Buzinadas e acenos partem os destinos das motos, que viram em esquinas diferentes das minhas. Chego em casa com um amigo viajante, que compartilha comigo o sagrado ritual de tomar uma dose de uísque escocês para dizer ao corpo e à casa que chegamos bem e vivos. O sol do dia perdura no rosto, o corpo começa a dar sinais de cansaço. Dali a pouquíssimas horas, estarei dormindo o mais profundo dos sonos exaustos. O dia foi vivido. Tudo valeu a pena.