Vi dia desses nas redes sociais que o desenho animado Doug, da Nickelodeon, completou 24 anos recentemente. A efeméride é quase concomitante ao aniversário de Ren & Stimpy, também da Nickelodeon (posteriormente) e também com 24 anos de existência. Ren & Stimpy provavelmente ainda é um dos desenhos que mais marcaram o começo da minha adolescência, com sua estética suja e escatológica e sua ousada abordagem homossexual inter-racial entre um gato passional e um cachorro neurótico. Mas é de Doug que guardo uma lembrança preciosa e difícil de esquecer na minha formação como pessoa: a minha primeira tomada de consciência.
No primeiro episódio de Doug, a família Funnie se muda para Bluffington, uma cidade pequena do interior dos Estados Unidos, simbolizando de forma mais do que concreta a passagem de Doug para uma adolescência de descobertas e devaneios imaginativos. É lá que ele conhece seu melhor amigo, Skeeter, sua grande paixão, Pat Mayonnaise, e seu nêmesis, Roger Klotz, cercado por sua legião de bullies. Mas não foi nenhum evento em especial que me chamou a atenção nesse piloto, em que Doug é enganado por Roger a pegar um suposto sapossauro no brejo de Bluffington. Foi uma luminosidade. No final do primeiro episódio, Doug está dando um banho de mangueira em seu cão Costelinha no crepúsculo, em seu primeiro dia na cidade. Só isso.
A imagem me bateu forte e inesquecível. O final do dia era o momento em que meu pai chegava em casa do trabalho e, enquanto decidíamos o que iríamos jantar, passávamos um para o outro os acontecimentos do dia. Por crescer em uma vila estritamente residencial, me identificava com os subúrbios norte-americanos e suas vidas pacatas. Doug, o desenho, era sobre isso, afinal: uma vida sem nenhum atrativo maior do que a imaginação do menino protagonista. Uma adolescência comum, com uma paixão, um amigo e um rival, os pilares de qualquer drama shakespeariano, mas também a base de qualquer dramaturgia vagabunda. Era também a matéria-prima da minha vida.
“O final do dia era o momento em que meu pai chegava em casa do trabalho e, enquanto decidíamos o que iríamos jantar, passávamos um para o outro os acontecimentos do dia.”
Fiz a correlação do crepúsculo retratado no desenho com o crepúsculo dos meus dias na pequena praia onde cresci de maneira quase natural, e me percebi protagonista de algo. Da minha própria vida, ou de algo maior ainda não revelado, quem sabe. Mas me vi ali como uma pessoa no mundo pela primeira vez. As grandes estórias, afinal, não são apenas feitas de super-heróis e monstros e feitos extraordinários. Que um desenho para adolescentes exista baseado em tamanha sutileza de sentimentos como era Doug, em uma época extremamente livre criativamente para animações (é sério, tinha de tudo naquela época. Como esquecer de Catdog, um cão e um gato siameses que dividiam o mesmo tronco?), foi um serviço que a televisão fez para mim, assumindo seu papel no fim de século de entretenimento transformador. Doug era qualquer um. Doug era eu mesmo. E eu estava no mundo.