Não é segredo nenhum que gostar de música tem outro significado quando se entende alguma coisa de música. A consciência da técnica transforma a experiência, para além do temido e controverso gostar melhor. Por exemplo, a indústria fonográfica de massa dificilmente resiste a uma certa erudição no assunto: artifícios são identificados repetidamente em todas elas, e o audiófilo que se deixe levar pelo embalo vai ser inevitavelmente mais feliz.
É claro que é sempre muito cioso falar sobre música nesses termos porque tratamos aqui de uma das poucas artes em que é possível ignorar completamente os aspectos técnicos que a componham em nome de uma apreciação afetiva. O guilty pleasure existe em maior ou menor medida em toda expressão humana que envolva um desequilíbrio entre razão e emoção, mas é na música em que o corpo se despe de freios, troca civilidade por arrebatamento, se joga e se abandona ao movimento. Mas admitamos aqui, para fins dissertativos, uma certa compreensão cerebral da música. Pois bem.
Não é segredo nenhum que gostar de música tem outro significado quando se entende alguma coisa de música. A consciência da técnica transforma a experiência, para além do temido e controverso gostar melhor.
Uma boa forma de introjetar o caráter técnico da música em sua apreciação é aprendê-la em seu instrumento de preferência. Uma prova de fogo que tanto apaga chamas avivadas pelo afeto de outrora como também eleva peças negligenciadas. Não precisamos nem ir a fundo no universo da música clássica para isso, muito embora talvez fosse útil a quem resume Bach a música de igreja e Vivaldi a propaganda de sabonete. A banda Rush, por exemplo, que aos meus ouvidos sempre soou como uma enorme masturbação de almas virgens movidas a sintetizadores bregas e solos de bateria, cresceu diante da compreensão de suas tessituras e construções frasais, compreensão essa alcançada diante da minha total inabilidade de acompanhar o baixo de Geddy Lee, é claro. YYZ e sua coleção bem ordenada de convenções, sua mixórdia de técnicas e sua progressão ao longo de um tempo musical que engana bem: o temido 5/4 se resolve facilmente, ao passo que o simplório 4/4 se torna um pesadelo crescente.
Por outro lado, músicas que são cantadas com uma mão no peito perderam parte de sua mística para mim quando resolvi descobrir de que notas são feitas. A belíssima canção “Skyscraper”, do Bad Religion, que, vá lá, tem um cromatismo interessante em alguns momentos, desmorona seu ímpeto de hino de goela diante de uma obviedade broxante de acordes que esperava encontrar em qualquer parte, menos ali. Por trás dos muitos arranjos que fazem de “Chop Suey!”, da banda System of a Down uma música disruptiva para seu tempo, está uma miséria semelhante.
Com isso não digo que a qualidade musical possa ser resumida com sua complexidade, afinal de contas, o metal melódico virtuoso continua lá para seus fãs de sempre, e a simplicidade de uma música tão batida como “Wicked Game”, de Chris Isaac é capaz de comover uma vez que é possível enxergar os mesmos três acordes para toda a melodia. Caímos de novo nas relações afetivas: as obviedades que comovem se chocam com as que empobrecem a música, e ninguém nunca poderá comparar Rush a Dragonforce por nenhum critério, muito embora seja completamente possível apreciar ambos. A música permanece um mistério, e a desvelamos pouco a pouco. Por baixo das ligações cordiais, a técnica. Por baixo do véu mesmerizante da técnica, de novo o coração. Ouvidos atentos à espiral que nos faz humanos.