Para Bruno Maron e Ricardo Coimbra
Ah, os momentos de culpa. O que seria de nossos valores como sociedade sem eles? A culpa é a imputação moral que transforma a partir de dentro, a força motriz freudiana da mudança psicanalítica. De que culpa estamos falando? De todas, mas a que eu gostaria de abordar aqui é uma que me acomete quase todo final de domingo: a culpa da debilidade física.
O sedentarismo é o estilo de vida que mais combina com a pós-modernidade. Sem espaço para cultivar músculos, sem tempo para trabalhar o tônus, um corpo atlético na cidade é um objeto fora de propósito – ainda mais em se tratando de uma cidade não-litorânea, onde o culto ao corpo não é um imperativo social. O corpo pálido e flácido de quem passa a maior parte da sua rotina na internet é o gatilho para esse ranço com a adaptação evolutiva. Nesse momento, é muito importante testemunhar movimento, admirar atletas, sonhar com atores e atrizes. Essa é a razão, inclusive, de todo e qualquer barzinho mais ou menos ajeitado tem uma televisão de LED ligada no canal Off!, uma programação que consiste basicamente em um videoclipe de 24 horas de pessoas bonitas, aventureiras e saradas fazendo tudo aquilo que nosso cotidiano não comporta.
Ah, os momentos de culpa. O que seria de nossos valores como sociedade sem eles? A culpa é a imputação moral que transforma a partir de dentro, a força motriz freudiana da mudança psicanalítica.
Eu, por minha vez, tenho meu próprio canal Off!, ou seja, meu próprio método de me livrar da culpa sedentária. Trata-se do videoclipe de “Knock me Down”, do Red Hot Chili Peppers. O single do quarto disco do quarteto californiano de funk metal é o primeiro depois da morte do primeiro guitarrista, Hillel Slovak, uma das mais dolorosas perdas que o mundo sofreu para as drogas injetáveis.
Em 1989, John Frusciante, ainda um garoto se comparado aos outros membros da banda – oito anos de diferença para o vocalista, Anthony Kiedis –, ainda era um jovem aprendiz de porra-louca, se excedendo nas drogas junto com seus parceiros musicais, que cantariam ainda por muitos anos o lamento pela morte do antigo membro. O clipe é um chamado pelo soterrado sentimentalismo masculino, algo que também viria a ser um motivo do grupo nos anos vindouros, mas o clipe é uma loucura completa.
Sentado em meu sofá, sinto-me um desses meninos monarquistas com caspa assistindo aos quatro músicos completamente sarados, bronzeados, o cabelo comprido brilhando, todas as drogas fazendo efeito ao mesmo tempo durante a performance. Experimentando baratos que um cidadão médio jamais conhecerá, lá estão meus heróis, ases do surfe, do rock ‘n roll, do groove, da metelança, alcançado níveis de bazófia insustentáveis para os dias de hoje, eles dão cambalhotas, se sacodem nas janelas, plantam bananeira, batucam na parede, giram abandonados ao movimento do descompasso químico que experimentam no cérebro.
Como é bom absorver a vitalidade que transborda da tela da TV enquanto mergulho um nuggets na maionese equilibrada em minha ampla e circunferencial pança. Que expurgo de culpa esse clipe é capaz de realizar nas mentes mais anódinas, como a minha. Nunca terei um físico como aquele e nunca estarei tão doidão a ponto de usar chapéu coco sem camisa, isso é fato, mas posso ao menos terminar meu domingo com um pouco mais de energia artificial. Tal qual um organismo pré-cambriano que absorve energia solar, estou distante no tempo e no espaço de tudo o que me coloca para a frente, mas sei o que estou fazendo no momento em que ouço as primeiras notas dessa música. E não me arrependo de nada.
It’s so lonely when you don’t even know yourself…