1.
É um amontoado de pedaços de pele, caspa, pelos que caíram do corpo, poeira dos móveis e das paredes e chumaços de tecido. Juntos, formam pouco mais do que uma presença indesejável pela casa, muito embora sua simples existência seja o suficiente para que, com um pouco de ajuda de microscópicas correntes de ar, mais partículas se amontoem. Tal qual uma fita adesiva que usamos para remover sujeira de ternos de linho, a bola de poeira ajuda a concentrar a sujeira da casa, mas não a queremos por perto.
Sua forma é variada, mas não chega a constituir uma indefinição. Organiza-se de acordo com padrões universais, aplicáveis tanto a moléculas quanto a galáxias. Os espaços vazios são de importância máxima para sua silhueta pouco condensada, como os buracos em um queijo suíço, mas é o entrelaçamento de partículas que o define. Uma constelação do mundo inferior, minúscula, conspurcada, vil e abjeta, agrega a tudo sem questionamento, apenas para, num momento posterior, ser recolhida por uma vassoura, um aspirador, um pano úmido ou um desses maravilhosos esfregões que a todo momento procuram atualizar tecnologicamente a antropotécnica da limpeza doméstica.
Sua forma é variada, mas não chega a constituir uma indefinição. Organiza-se de acordo com padrões universais, aplicáveis tanto a moléculas quanto a galáxias. Os espaços vazios são de importância máxima para sua silhueta pouco condensada, como os buracos em um queijo suíço, mas é o entrelaçamento de partículas que o define.
2.
Há uma cena em Advogado do Diabo em que o demônio em pessoa adverte a seu advogado que a maior parte da sujeira de um lar é constituída pela própria pele das pessoas, sendo nós próprios a gênese da poluição caseira. Diferentemente, porém, da amputação espontânea que realizamos como forma de manutenção do corpo em salões de beleza e estúdios de depilação, o amontoado de queratina e epitélio que se desprende marca a passagem dos dias e a decrepitude não autorizada. Decaímos a cada segundo e descartamos a sujeira seguros de que nada em nossa essência se altera com essas microscópicas perdas. Para nós, tudo aquilo que nos constitui apenas o é enquanto nos reveste e nos amplia o espaço ocupado no universo. Qualquer dissidência é descartável, asquerosa. Mal nos suportamos fora de nós mesmos.
3.
Na primeira temporada de Ren & Stimpy, antes que a censura familiar PG-13 vetasse os teores homoeróticos de casal de desenho animado formado por um chihuahua estressado e um gato gordo e romântico, Stimpy, após uma briga devastadora com seu companheiro, sofre de saudades a ponto de construir uma réplica de Ren a partir de sua própria cera de ouvido. O viés cômico da escatologia ofusca a complementaridade fisiológica que o amor supõe. Stimpy entende Ren como parte de si, e o eu não faz distinção estética, muito menos reserva ao outro os cortes nobres da carne. Quando se ama, o outro é feito de suas entranhas, sua pele, seu cabelo, seu sexo, suas mucosas e secreções, e aquilo que para o realismo sujo do cubano Pedro Juan Gutíerrez apenas se concretiza no ato sexual, em Ren & Stimpy também é verdade na ausência e na saudade. A bola de poeira que rola pela casa e acumula pedaços do cosmos, se tornando maior da substância que outrora foi vida, é uma representação prática de uma Katamari Damashi, o “amontoado de almas“ que restaura a forma una do cosmos a partir de pedaços minúsculos. Galgando grandezas em medidas microscópicas, continuamos sendo feitos de matéria estelar, conforme nos relembra Carl Sagan, e nossas bolas de poeira caseiras um dia integrarão o vácuo mais uma vez. Por enquanto apenas a varremos e a tiramos de casa, extirpando-nos de nossa própria presença. Os maníacos por limpeza, os alérgicos e os de formação espartana acreditam resolver o problema, mas nada resolvem. O homem é o lobo do homem, e pede desculpas pela poeira. Não sabem que um dia, quando não houver mais homens, a poeira reinará sobre o sistema solar e não se ouvirá ninguém pedir desculpas por nada. A poeira nos sobreviverá.