O escritor italiano Italo Calvino é conhecido por ter duas abordagens distintas em sua literatura. Sem separação por fases, seus livros se alternam entre as ficções mais fantasiosas, sobre viscondes partidos ao meio, cavaleiros inexistentes e formigas argentinas, e relatos de um realismo bruto, seja sobre suas andanças em Paris, seja sobre crianças perdidas em meio a Segunda Guerra Mundial. Sobre esse realismo, há um livro pouco lido, mas que se destaca, chamado O dia de um escrutinador (La giornata d’uno scrutatore, no original), de 1963. A novela curta narra o dia de um mesário encarregado de recolher os votos em um asilo para deficientes mentais, e parte de uma experiência que o próprio escritor teve quando decidiu se voluntariar como mesário no Cottolengo, tradicionalíssima instituição italiana desta natureza, após conhecer a realidade eleitoral do recinto em uma rápida passagem por lá como candidato a deputado pelo Partido Comunista Internacional.
A grande revelação que faço é que O dia de um escrutinador foi erroneamente classificado como ultrarrealista. A convicção de Calvino de que o dia de um mesário é digno de uma novela, ou mesmo de um conto panfletário que denuncia a política democrata cristã de sua época, é uma de suas invencionices mais fantasiosas. Constato isso enquanto cabeças se enfileiram na seção em que me encontro como secretário, no colégio João Turim, no Rebouças, durante as eleições municipais. Meu coração me diz com certeza absoluta que nem o mais extraordinário tipo de eleitor é capaz de transformar a burocracia de uma democracia saudável em material de ficção – muito embora entenda como alguns escritores fetichizam a arte de escrever sobre os aspectos menos emocionantes da existência, com não raro sucesso (ver: Ciro dos Anjos, Karl Ove Knausgard). Em dez horas de modorrento trabalho, posso elencar com facilidade os três momentos mais emocionantes do dia, em ordem crescente de emoção: 3 – A impressão da bula eleitoral para pendurar na porta da seção e dar publicidade ao resultado; 2 – a hora em que saí para almoçar; e 1 – um intervalo de dez minutos por volta das oito da manhã, quando quatro mulheres chamadas Elizabeth coincidentemente foram votar juntas.
Meu coração me diz com certeza absoluta que nem o mais extraordinário tipo de eleitor é capaz de transformar a burocracia de uma democracia saudável em material de ficção.
De resto, o quebra-pau por parte de quem não entende as regras de preferencialidade na fila para a votação, o calor abafado de trinta e um graus numa sala de aula com parcas, minúsculas e emperradas janelas basculantes, a estética de placas feitas de papel ofício e biombos de papelão branco, o caderno com os canhotos que se torna mais surrado a cada hora manuseada e a imensa chuva que tomei na volta para a casa, numa viagem urbana de moto que, de forma poética, sumariou a desgraceira do dia é o quinhão que me cabe em um dia que poderia ter sido gasto cheirando as flores, lendo os russos, sorvendo o vinho nosso de cada dia ou mesmo, como um bom cristão, acordando às onze da manhã de um domingo, já que o dia é feito para isso, afinal de contas.
Mas não. O serviço voluntário a que me submeti, e que esperava que me trouxesse iluminação sobre a genialidade de Calvino é árido, “uma função modesta e necessária”, como seu personagem diz. Trezentos e cinquenta eleitores presentes de um grupo de quase quinhentos, muitos deles saudosos da escola em que estudaram ou lecionaram, e que agora revisitam para quitar-se com a justiça eleitoral. Alguns poucos se compadeceram do nosso confinamento, ainda mais quando sentiram o calor da sala, mas, dos trezentos e cinquenta, nenhum nos invejou naquele dia. Eu e meus colegas fomos parte da máquina impessoal e inconveniente que mobiliza todos a saírem de casa num dia em que nada se deseja além de sossego. Um dia longuíssimo feito por gente como nós, que marcamos a experiência com o calendário das obrigações.
Mas já acabou, pois o prefeito de Curitiba aparentemente é muy amado por seus citadinos, que sem rodeios arremessou a atribulada responsabilidade da alternância de poder aos sobreviventes do Covid-19. Ganho com isso dois presentes inestimáveis: a ausência de mais um dia como esse e folgas do trabalho. Porque sejamos realistas como Calvino: não há motivo nobre e a propaganda do TRE é um comercial da Benetton, um Barão nas Árvores de lindezas inexistentes e intangíveis. Só existe a realidade do dia do verdadeiro escrutinador: trabalhar em um dia para folgar em outros dois. De resto, não há poesia e material literário para o dia do mesário. Nem romance, nem novela, nem continho. No máximo, uma crônica.