Crônicas em ônibus: um subgênero apreciado. Cronistas andam a pé e de ônibus, nunca de carro, descaradamente disfarçando a ausência de poder aquisitivo com a necessidade da busca pelo cotidiano nos epicentros da vida urbana. Praças, calçadões, bares, cafés, parques, janelas alheias e ônibus. Esses são os cenários possíveis.
Nas praças, a vida estática e bucólica, a versão textual da natureza morta, contemplada sem pressa; nos calçadões, o tumulto da cidade, os personagens pitorescos que fazem da própria presença constante um traço de personalidade, que aos poucos vai se tornando também a personalidade da urbe. Barulho, informação; bares e cafés são a versão menos invasiva das janelas alheias, uma espiada na intimidade pública de figuras comuns, suas rotinas e a brecha aberta de vida pela qual o cronista especula todo o resto com sua imaginação e falta do que fazer; finalmente, os ônibus, a vida em movimento. Praças, calçadões, bares e cafés, todos os temas misturados, e com muitas janelas, que embaçam quando chove.
Cronistas andam a pé e de ônibus, nunca de carro, descaradamente disfarçando a ausência de poder aquisitivo com a necessidade da busca pelo cotidiano nos epicentros da vida urbana.
Os ônibus preferidos dos cronistas são de dois tipos: ou as grandes linhas que quase todos os cidadãos precisam pegar vez ou outra, ou o ônibus que ele mesmo pega para ir a algum lugar frequentemente. O desta crônica em questão é do último tipo. A linha Cristo Rei, marcada desnecessariamente com o número 385 para uma sociedade que não lê números de linhas, é um ônibus pequeno e amarelo que dá uma volta pelo centro da cidade antes de voltar ao bairro de mesmo nome. O que torna o ônibus tão peculiar é explicado em parte pelo fato de que o bairro é bem abastecido de linhas rodoviárias que levam até o centro de maneira mais rápida, tornando-o, de certa maneira, redundante para muita gente, menos para os idosos, cuja faixa demográfica só cresce.
Sete horas da noite, o Cristo Rei, o ônibus surge na avenida principal do Cristo Rei, o bairro, voltando do centro, e o conceito de assento preferencial parece uma gague dissimulada diante dos velhinhos que, tal qual um comercial de refrigerante dos anos 90, estão cheios de vida fazendo uma algazarra. O banco mais disputado da lotação não são os amarelos dos idosos, gestantes e deficientes, mas aquele que fica mais perto do motorista, porque concede a quem está sentado o privilégio de conversar com o condutor – não apenas o mais jovem dentro da máquina depois de mim como também uma espécie de mascote dos fugitivos de Cocoon. Não que os outros não gritem as conversas para a cabine da frente e de lá venha igualmente a resposta em volume alto a vencer a maquinaria do motor. Ele conhece todos os passageiros pelo nome, e também é chamado pelo seu.
O botão de parada é acionado. Começam as despedidas com promessas de bolinhos, cafés e mais conversa em algum outro dia. “Vai ter que ter paciência agora, Isaías, porque a Marta vai descer”, grita uma senhora com o rosto feliz inteiro sulcado por rugas. “Ih, então eu vou até desligar o ônibus pra esperar”, grita a resposta, com o súbito silêncio do motor. Gargalhadas desde o fundo até a frente do ônibus. “Que exagerado, eu vou descer rapidinho!”, protesta uma mortalmente ofendida Marta, não totalmente injustiçada na brincadeira da amiga, que a observa tatear devagar os degraus da escada com as pernas curtas e arqueadas dentro de uma comportada saia reta. Como no final de um episódio de Os Waltons, todos descem dando boa noite ao John Boy, que, mais uma vez, não deixa uma despedida sem resposta e sem um aceno simpático com o olhar fixo no retrovisor.