Há uma esquete no péssimo Para Roma com Amor – uma prova concreta da decadência técnica e criativa de Woody Allen em uma inevitável retrospectiva de sua carreira será a existência desse título – em que Leopoldo, o personagem de Roberto Benigni, se torna uma celebridade da noite para o dia. Tudo nele é interessante aos paparazzi que o enxameiam: o que come no café da manhã, como gosta de suas torradas, enfim, toda a sorte de perguntas que parecem normais de serem concebidas a uma pessoa famosa, mas completamente fora de lugar como fato público de um cidadão qualquer. Eis o estranhamento pelo qual Allen queria fazer graça: a publicização da vida ordinária evidencia a ordinariedade da vida em si.
Para além do fino tecido da convenção, é, portanto, por mera afinidade eletiva (e algum impulso artístico) que qualquer pessoa pode se tornar interessante. Encontramos exemplos por toda parte. Para citar alguns: o anti-herói americano Harvey Pekar, o curta-metragem de Jorge Furtado Esta não é a sua vida, o romance Stoner, de John Williams e, numa demonstração mais involuntária, a biografia de Washington Olivetto, Na Toca dos Leões, escrita por Fernando Morais. Para mim, é meu amigo Murilo. Murilo é meu Leopoldo, meu Harvey Pekar, minha Noeli, meu William Stoner, meu Washington Olivetto. Sua vida monolítica e sua cosmovisão, ambas completamente deslocadas do que pode ser considerado convencional, exercem sobre mim um fascínio que faço muito pouco para esconder.
Murilo é um furacão apático, um nêmesis preguiçoso, um sincericida solto na grande loja de egos de porcelana do mundo. A fúria da mente e a calma do momento.
Sobre Murilo, fiz dois perfis em dois momentos distintos de sua vida, no formato de tirinhas de jornal, quando era cartunista da Gazeta do Povo. Nessa época, não era raro que algum conhecido se espantasse de nos encontrar andando juntos na rua e de constatar que aquele rapaz alto e magro, com barba e alargadores distintos, não era, afinal, ficção de uma mente fértil. Sua misantropia aberta, seu gosto por atividades suicidas, suas péssimas ideias para quase qualquer coisa e sua formação intelectual mista que combina literatura russa do século 19 e programas sobrevivencialistas, aliados à sua falta de interesse crônico para qualquer coisa socialmente útil – incluindo o trabalho – fazem um caldo criativo rico de caos sobre a rotina. Murilo, para mim, é mais do que um amigo. É uma ideia. Um “e se” colorido com os pastéis vívidos da vida sem as amarras sociais que regem a maior parte das horas.
Murilo é um furacão apático, um nêmesis preguiçoso, um sincericida solto na grande loja de egos de porcelana do mundo. A fúria da mente e a calma do momento. Alguém que foge antes que o mundo possa lhe entender, como no Bolero. Uma complexidade que não se esgotou em mais de sessenta tirinhas e que também não se esgotará em uma pequena crônica como essa. Resta a insaciabilidade mau-caráter do paparazzo, ansioso por alardear a vida que quer distância de tudo. A todos, portanto: Murilo.