Quem me convidou foi o Renan, mas eu não o culpo. Era aquela hora da madrugada em que todos os outros amigos já tinham ido para casa e ele ainda precisava sair. Queria ver a amiga que estava lá. Eu não sabia nada. Só uma vez em que o Diego saiu bufando de lá, falando que nunca mais poria os pés naquele ambiente ridículo. Bom, era ridículo mesmo. As prainhas da cidade – como chamam os terríveis bares de portinha que se enfileiram ao longo de uma rua ou deck e, noves fora a especulação imobiliária, fazem um ponto de encontro democrático para os jovens da cidade – estavam se multiplicando, e o próximo passo era aquele, na Rua Itupava. Juntar tudo debaixo de um teto e criar, dessa maneira, um híbrido entre a balada e a praça de alimentação. Se soubesse que era disso que se tratava, jamais teria estranhado. Quem é que não gosta da rua, afinal? Quem prefere ficar confinado num lugar ouvindo um DJ pejorativamente eclético fazendo uma seleta que poderia muito bem ter sido feita por um pen drive em modo shuffle?
Estavam todos ali, os filhos do PSDB. Jovens exibindo uma saúde cultivada em espaços fechados como aquele, com músculos nos lugares, nutridos na mamadeira de whey, a sobrancelha tirada, o escapulário de ouro ou prata sendo entrevisto pela abertura da gola em V. Mulheres com camadas espessíssimas de reboco na cara, equilibrando coxas enormes sobre saltos de agulha, espremidas em vestidos pretos, justos, justos como o Rei Salomão. A atenção delas era constantemente disputada pelos homens, que rugiam, gritavam, dançavam de maneira oligofrênica, giravam chaves de carro nos dedos e, quando tudo falhava, simplesmente puxava alguém pelo braço, tal qual um homem das cavernas de Renew. Foi a cena que presenciei logo que botei os pés lá dentro. O ar cheirava a perfume de duty free, cigarro eletrônico e adequação.
“Vamos ali buscar a nossa amiga, que está entrando no carro do cara”, disse a amiga do Renan, me explicando que a amiga estava, naquele exato momento, sendo arrastada para um motel e não queria ir. “E ela não pode dizer que não quer?” perguntei, e minha pergunta soou como uma ofensa, como se houvessem muito mais tons de cinza do que as minhas obviedades poderiam sugerir. Lá foi ela e uma outra amiga em resgate da terceira, deixando para trás a música de alguma dupla sertaneja feminina com nomes mnemônicos e que ainda assim pude esquecer e todo aquele papo de que o Brasil quebraria sem a reforma da previdência escorrendo pelas paredes.
As prainhas da cidade – como chamam os terríveis bares de portinha que se enfileiram ao longo de uma rua ou deck e, noves fora a especulação imobiliária, fazem um ponto de encontro democrático para os jovens da cidade – estavam se multiplicando, e o próximo passo era aquele, na Rua Itupava.
Do lado de fora, o sequestrador manobrava seu carro de playboy cuzeta para fora do estacionamento. Um desses carros pretos que ninguém compra com o próprio dinheiro e que tem um nome que sugere se tratar de um brinquedo, como Veloster. Quando o malandro percebeu que havia um plano para tirar a gata do carro, botou o pé no acelerador e obrigou a amiga do lado de fora a fazer cooper e negociar ao mesmo tempo. Aquela cena estava ridícula. Meus pensamentos circularam pela distante e ideológica luta contra o Talibã, Malala discursando em Estocolmo, os desenhos chapados de Marjane Satrapi e enfim voltaram para o presente, só para testemunhar a amiga negociadora também entrando no carro.
A informação me foi passada: ela iria com o casal até o estacionamento na outra rua pegar o carro dela, para enfim tirar a amiga sequestrada do Veloster ou qualquer outro carro cuzeta do tipo. O poder do sequestrador foi transmutado em um serviço de vallet de última hora. Virei para a amiga do Renan e disse que, se fosse por falta de indicação, eu poderia indicar lugares dez mil vezes mais civilizados e agradáveis do que aquele. Ela me olhou com uma cara feia, disse que aquilo era normal e eu não entendia. Eu disse que não era normal nem por um minuto. “Você deve ir muito em balada gay pelo visto”, foi a resposta que calou a discussão. Tinha mesmo muito gay por onde eu costumava transitar. Não sabia que a presença da comunidade LGBT era um indicativo de pureza do ar, como as borboletas amarelas na cidade, e os lugares aonde os gays não iam eram a própria versão Área VIP do Senhor das Moscas.
Precisava ir embora, para longe daquele lugar. O motorista do Uber precisou ouvir minha reclamação constante sobre tudo o que eu havia visto. Ele, coitado, não tinha nada a ver com aquilo, ou pelo menos assim eu esperava. Cheguei em casa e deitei na cama sonhando com civilizações melhores, alheio a todos os dramas cuzetas que se desenrolavam em outras partes da cidade. Melhor assim. Distância. Para sempre, distância.