Uma das palavras mais tristes da língua portuguesa é “arruinar”. Arruína-se o que antes era bem constituído, e o que era bem constituído há de ser necessariamente bom, caso contrário – com o perdão da tautologia – não seria possível lhe conferir tal predicado. Não se diz de uma ditadura que ela seja bem constituída, por exemplo. No lugar, é preferível usar palavras que demonstrem força sem demonstrar virtude, tais como “persistente”, “sólida”, ou mesmo adjetivos sobre os quais pode-se auferir juízo de valor, como “tirana” ou “implacável”. Diz-se que uma ditadura, reflexivamente, se acaba, se colapsa, ou, passivamente, que é deposta, destronada, acabada. Mas uma ditadura não é arruinada por ninguém. Ao contrário, uma ditadura é o que arruína outras coisas.
Aquilo que é arruinado foi, antes da desgraça, bem-constituído, mas também imperfeito, já que a ruína é uma mudança e a perfeição, na paráfrase malfeita de Agostinho de Hipona, prescinde de mudanças de qualquer natureza, tanto para melhor quanto para pior. O que o arruinamento da coisa imperfeita furta é a capacidade de mudar para melhor. O arruinamento é um aborto de possibilidades, uma ingerência catastrófica que traumatiza qualquer possível memória da coisa arruinada, tornando ainda mais difícil um ressurgimento, quando for o caso. O que arruína traz a possibilidade de mudança para trás do ponto onde estava.O que é arruinado, em poucos ou muitos instantes, não importa na verdade, desfaz anos ou eras de constituição. É o antitrabalho, a bola de demolição do tempo que opera sobre os feitos. À coisa arruinada não compete nenhuma ação, apenas se deixar contemplar em sua ruína. Memento mori de toda a criação, é brasa que queima o escuro da lenha, é pó de vidro que se espalha pelo assoalho na diáspora fatídica do que um dia já foi uno, é o nunca mais de Heráclito definido e assinado pelo deus caos.
O que é arruinado, em poucos ou muitos instantes, não importa na verdade, desfaz anos ou eras de constituição. É o antitrabalho, a bola de demolição do tempo que opera sobre os feitos.
Lamento sempre o que é arruinado, mesmo que antes nunca tivesse tido a oportunidade de cultivar qualquer simpatia pelo já não mais. Das relíquias do império assírio às grandes cidades toltecas, da guitarra quebrada pelo roqueiro em performance irracional a todo campo cultivado e depois grilado, ativistas de causas perdidas e líderes humanos que parecem, eis minha flor de palavras, meu uivo inaudível e meu desejo besta de mera transformação sustentável. Minha vontade de abolir para sempre a palavra “arruinar”, tanto da gramática quanto das tristezas. Que nunca mais se arruine nada. Nem uma cabeça de alfinete.