O romance Tia Julia e o Escrevinhador, de Mario Vargas Llosa, contém um dos meus personagens favoritos do peruano – sempre muito contundente para criar dramas, mas realmente brilhante quando se propõe a fazer rir. No enredo levemente autobiográfico, Varguitas, o protagonista, conhece na rádio em que vai trabalhar o escritor de radionovelas Pedro Camacho. O boliviano, baixinho, feio, mal-humorado e preconceituoso, exerce, apesar dos predicados negativos, um fascínio enorme por quem quer que se disponha a apreciar sua obra. Eis o problema: apenas a obra de Camacho é digna de nota. O próprio autor não poderia ser mais indesejável.
Vargas Llosa criou esse personagem na década de 70 para personificar o escritor ideal, um paradigma a ser seguido pelo próprio Varguitas, ele mesmo um aspirante. Camacho vive para escrever, e nada mais nele importa. E escreve, escreve e escreve, até que começa a confundir suas histórias, donde vem a graça deste arco do livro. Conheci, nessa vida de lidar com livros, alguns autores, alguns escritores – em menor número, para quem a diferenciação importa – mas não posso dizer que talvez tenha conhecido alguém como Camacho. Conheci, porém, o seu espelho de interlocução. Trata-se do crítico e jornalista Rodrigo Casarin, editor do blog Página Cinco, da UOL. Casarin é o mais perto do que creio ser um leitor ideal. Alguém que lê, e lê muito, mas não apenas isso, obviamente.
Entre todo final de livro e início de outro está uma ordem para olhar ao redor. Correr, beber, encontrar os amigos, fazer, enfim, a leitura da vida real, é o imperativo e a faixa preta do bom leitor.
Encerre-se aqui os paralelos com o personagem de Llosa, pois desejo tratar do hábito da leitura como virtude, e não da pessoa que lê. Casarin guarda em si a primordial qualidade do bom leitor: a curiosidade. É claro, é algo básico, elementar. E ainda que fácil de diagnosticar, a curiosidade literária em seu estado puro é difícil de sustentar em uma realidade eivada de valor agregado. Como leitor, se interessa pelos clássicos, pelos contemporâneos, pelos estreantes, pelos poetas, pelos marginais, e até mesmo pelos pseudocientistas, picaretas e demais materiais em decomposição da serrapilheira da grande e misteriosa floresta que é a literatura.
Enquanto a maioria de nós se assemelharia a urbanoides abobados por vivenciar a natureza desse ecossistema, Casarin é como um pastor alemão frito de LSD solto no grande desconhecido. A ele interessa tudo – da copa das árvores ao rés-do-chão – e tudo faz parte da mesma coisa. Literatura e dia a dia, em sua abordagem, não funcionam como peso e contrapeso de um sistema para o qual o equilíbrio é o resultado final, mas sim como dois tipos de metal usados para fazer a liga de uma barra que sustenta o que quer que precise ser sustentado.
Rosa Montero, em seu livro A Louca da Casa, diz que absolutamente nenhum escritor, diante da opção de permanecer apenas leitor ou apenas escritor, escolheria a última. A literatura se produz porque é necessário, mas não é o suficiente. A leitura, por sua vez, é oxigênio e pode vir a bastar como arte, caso o leitor saiba ler. Mas jamais bastará para a vida. A contradição inerente da literatura é que quanto mais se lê, mais se percebe que é preciso cada vez mais não ler.
Entre todo final de livro e início de outro está uma ordem para olhar ao redor. Correr, beber, encontrar os amigos, fazer, enfim, a leitura da vida real, é o imperativo e a faixa preta do bom leitor. Pedro Camacho pode continuar sem dinheiro, sem beleza, sem sono suficiente, sem nada que sirva à alma de quem não escreve. Casarin lê de tudo porque tudo faz parte da vida, e lê porque a vida não basta, mas vive porque a literatura também não.