O guarda abre a porta de vidro de manhã e fecha a porta de vidro no final do dia. Os outros guardas chamam ele de tio, por ser um pouco mais velho, mas principalmente por ser alto, grisalho e calado. Sorri pouco, fala pouco, mas ninguém arrisca dizer que não seja feliz. Tem uma tranquilidade no rosto, a calma de quem não bota demônios no travesseiro. Por outro lado, também não transborda felicidade. Fica de pé, a mão no bolso, a arma no coldre, o olhar no horizonte. Um fone de ouvido numa orelha só, para não se alienar do entorno. Só vi dançar uma vez, num churrasco de confraternização da firma. Ficou quieto a festa inteira, mas lá pelas tantas pediu pra botar um Legião Urbana. Balançou um pouco os joelhos e, com isso, fez parecer que a noite estava ganha.
É, pois, um homem moderado. Extravasa pouco. E pontua o seu lugar do prazer. Tem isso na sua rotina pós-expediente. Consiste em fechar a porta de vidro e pegar a minha cadeira, a cadeira que não uso mais porque meu horário termina antes do dele. Busca um café e um pão na copa. Senta então e contempla a firma fechada. Não sei o que pensa disso, não sei a importância que tal paisagem pode ter no seu dia. Talvez a tranquilidade assegurada, talvez o deserto asséptico da sala limpa de presenças, vai saber. Não pergunto, menos para não importunar e mais para preservar sua subjetividade.
É, pois, um homem moderado. Extravasa pouco. E pontua o seu lugar do prazer. Tem isso na sua rotina pós-expediente. Consiste em fechar a porta de vidro e pegar a minha cadeira, a cadeira que não uso mais porque meu horário termina antes do dele.
Então, lá pelas tantas, faz as cruzadinhas do jornal do dia. É nesse ponto que gostaria de chegar, pois é uma parte nevrálgica de sua rotina. Já lhe ofereci uma revista só de palavras cruzadas, mas ele gentilmente recusou. Tem que ser a do jornal e tem que ser a do dia. Mais importante, tem que ser num momento exato. O momento em que, talvez, o tédio e a melancolia começam a tomar corpo dentro de si. Há dias em que ele demora para apanhar o jornal. Às vezes apanha mais rápido. Mas nunca resolve as cruzadinhas assim que se senta na minha cadeira, nem nunca faz mais do que uma. É um epicurista de coração, pois. Existem alguns pequenos prazeres que compõem sua rotina pós-expediente. A minha cadeira. O pão e o café no fim do dia. A firma vazia. Mas sem as cruzadinhas, não há uma alegria redonda, cheia. A alegria do tio é silenciosa como ele. Mas é plena. É nelas que ele se entretém todos os dias depois que a firma fecha. Na hora e na medida certa.
A busca da felicidade, para Epicuro, está relacionada à manutenção dos prazeres. Nada mais sensato, então, do que prazeres de baixa manutenção. A felicidade tem poucas receitas, e muitas tem durabilidade curta. O tio parece ter decifrado ao menos uma delas. É muito mais do que a maioria das pessoas pode dizer de seus próprios momentos alegres. Risca as letras nos quadrados, vira o jornal para conferir as respostas. Lê um pouco as matérias, não tem dúvida: a vida está sob controle.