O vendedor de abacaxi gosta das minhas botas e do meu casaco de couro. Os guardas gostam de brincar que não dá pra saber se o vendedor de abacaxi vai te oferecer um abacaxi ou cometer um assalto. Mas acho que isso é só o preconceito falando, por causa da pouca idade do vendedor de abacaxi e da prosódia mezzo agressiva, mezzo simpática que qualquer um que teve uma infância hostil e de repente precisou sorrir para ganhar dinheiro guarda dentro de si com certa dificuldade de abandono.
Todo dia ele chega com seu carrinho de mão repleto de abacaxis. Não sei de onde vem e como faz para trazer tanto abacaxi para a frente do escritório. Talvez venha andando, Deus sabe de onde. Talvez tenha quem dê uma carona, na boleia de uma caminhonete ou algo assim. Usa botas como as minhas, um casaco de couro como o meu, e ostenta um belo e grande relógio de pulso dourado. Diz que é roqueiro. Diz que o pai faz parte de uma facção criminosa. Diz que não fala com o pai. Diz muitas outras coisas, mas sempre quer puxar algum assunto e me chama de piá. Pergunta se vou descansar, se o trabalho que eu tenho é muito estressante, se é fácil trabalhar com o que eu trabalho. Digo que sim, sim e sim, claro. Ele diz que gostaria de tentar trabalhar como eu trabalho qualquer dia, e diz também que sofre preconceito por ser roqueiro e ter pele vermelha. Lamenta não ser geneticamente propício a ter pelos e diz que o cavanhaque que ostenta é o máximo que pode fazer para ter uma barba como a minha. Gosta da minha barba.
Volta e meia pergunta se eu quero um abacaxi, mesmo nunca tendo mostrado o menor interesse no produto. Hoje não, quem sabe amanhã, digo com aquela falsa simpatia de quem não quer desesperançar o comércio local.
De vez em quando gosta de me contar sobre a vida dele. Que tem dificuldade para dormir à noite por ser muito ansioso e que não leva desaforo para casa. Deu uma facada no braço de um ladrão que tomou seu celular no Largo da Ordem. Não dá pra andar no centro da cidade sem a peixeira, analisa. Ligou para o pai, com quem não fala, para reaver o celular e ir atrás do safado. Não sei se houve uma procura, mas de qualquer forma, foi um plano malsucedido. Mesmo que tenha jeito de assaltante, segundo os guardas, não está imune de um assalto.
Nos dias frios vende pouco abacaxi. É pouco consumido no frio, pondero. E porque está tão frio, ele quer saber. Porque estamos no inverno, vaticino. Ele desperta do transe em que parecia estar e concorda comigo, nossa é mesmo. Volta e meia pergunta se eu quero um abacaxi, mesmo nunca tendo mostrado o menor interesse no produto. Hoje não, quem sabe amanhã, digo com aquela falsa simpatia de quem não quer desesperançar o comércio local. Outros que passam por ali respondem a mesma coisa. Quem sabe amanhã. Mas tempo para trocar meia dúzia de palavras no fim do dia sempre tenho. Conversamos amigavelmente, dividindo o mesmo local de trabalho. Eu, do lado de dentro; ele, do lado de fora. Jamais pensaríamos em conversar um com o outro, e entretanto cá estamos.
O vendedor de abacaxi não diz quando vem e nem quando não vem. Simplesmente aparece, e eu não sei se é por vontade própria ou condições externas a ele. Vai saber, Deus que sabe. Sendo confundido com assaltante pelos guardas e trocando facada com malacos no Centro, as possibilidades são incertas. Cada vez mais incertas. Mas talvez seja só eu mesmo, preocupado com o amigo da rua que não vem nos dias cinzentos.Hoje ele não veio. Quem sabe amanhã.