Vejo relatos distintos brotando na internet aqui e ali de como as sociedades administram suas quarentenas. Uns poucos malham em casa, outros muitos bebem, alguns que conseguem manter a sanidade aproveitam para colocar a leitura em dia, etc. Mas o paulistano, de longe o mais midiatizado tipo de brasileiro que existe (talvez em empate técnico com o gaúcho) parece estar desenvolvendo uma patologia inusitada: a projeção das dores do confinamento na confecção de pão caseiro.
Da hora em que se acorda até a última pipada na pedra de crack das redes sociais, fotos de pão explodem na tela. Brancos, pretos, em blocos maciços e esfarinhados numa mesa de preparação que aparenta ainda não ter sido limpada por falta de tempo. É preciso que haja farinha por todo lado: depois de eras geológicas, cria-se enfim um novo arco compreensivo para a expressão “colocar a mão na massa”. Uma espécie de ansiedade por reciprocidade, a devolução da produtividade ao mundo em um momento de estagnação cultural e fabril. Como crianças eternamente presas na fase anal, paulistanos buscam fortalecimento psíquico através do controle de suas pequenas produções. Todos os outros passatempos parecem se desarranjar diante da nova ordem das coisas. Chega da diversão passiva, é preciso criar diante do pesadelo da ausência de alimentos, ou de sua má distribuição, para citar um fenômeno mais comum durante epidemias.
A agricultura de apartamento parece insuficiente e a pecuária intensivíssima é barrada não só novamente em nossa limitação espacial, mas também pelo nosso novo entendimento moral sobre o que seja confinamento. Resta a transformação do bruto em refinado. Paulistanos correm aos armazéns, testam receitas com diversos tipos de farinha em complexa mistura, reclamam do súbito desaparecimento de fermento levain das prateleiras especializadas e, solitariamente, entrelaçam-se na grande psicose coletiva da panificação da solidão.
Da hora em que se acorda até a última pipada na pedra de crack das redes sociais, fotos de pão explodem na tela. Brancos, pretos, em blocos maciços e esfarinhados numa mesa de preparação que aparenta ainda não ter sido limpada por falta de tempo.
Que a culinária tenha propriedades curativas e emocionais, qualquer romance de Jorge Amado já provou. A quarentena torna necessário experimentar uma nova lentidão da cozinha, sem que isso debilite o orçamento. Duas horas por dia é pouco, mas o que fazer se tudo é dispendioso? Um ossobuco de cinco horas no forno é um prejuízo financeiro incomensurável em épocas de retração econômica. A operação do tempo sobre o pão, diferentemente, não é físico-química, mas biológica, e carrega em si o tempo da vida – aquele que existe para fora da lógica de consumo externo e que entendemos como natural. A massa descansa como nós: fervilhando de vida e com desejo de expansão, mas ainda circunscritos ao mesmo espaço. É amassada e modelada para aí sim, experimentar a alquimia da temperatura. Mais uma vez a fase anal: a demonstração de posse e a necessidade de se livrar daquilo que não é necessário – a energia dos dias são gastas todas dentro do lar. Tira da forma, bota na mesa, tira a foto, expõe a criação ao mundo. Eis aqui minha solidão: resultado de meus dias, meu suor, minha energia, meu tempo e minha alquimia físico-química-biológica. A diferença entre outros pães e este pão é que este é meu por inteiro, assim como a minha solidão é minha por inteiro.
Amassar a massa do vazio dos dias é o quinhão que cabe a cada um durante uma quarentena.