Nove e meia da noite e o homem que espera os outros na saída do mercado se esconde da pouca luz de poste que ilumina a rua. Penso em passar por ele, mas, quando me vê chegando, se coloca entre a passagem e meus futuros passos. Pede dinheiro. Diz que tem fome. Penso que é isso: cada dia que passa, as pessoas sentem mais fome. Não há trabalho, não há possibilidade de sonho, tudo é como a escuridão da noite em que aquela silhueta se escondia antes de me abordar. Faço movimentos para pegar minha carteira, mas isso não o detém de continuar se explicando. Algum constrangimento o obriga a completar aquele possível silêncio com explicações sobre o porquê de estar pedindo dinheiro. Talvez tenha algum orgulho que deseje manter, apesar de tudo.
Mas eis que tudo muda quando diz que está sem trabalho há algum tempo, porque trabalha com reciclagem e não consegue mais emprego por conta de um fungo que contraiu em algum lugar. Enquanto procuro moedas, ele tira o pau para fora e me mostra o saco mais doente que já vi em toda minha vida. Coisa de apostila de Biologia da oitava série. A escuridão, tão generosa com aqueles que dançam nas boates e fazem a Gestalt da atração, não me poupa os detalhes: as pústulas pretas dentro de uma grande mancha azulada que come virilha, escroto e púbis, as bolhas que ainda não foram estouradas. Não sei o que é aquilo, mas não é nenhuma micose. Sei que aquele pedinte intencionalmente sequestrou a realidade. Agora não é o fungo, não é a fome que parece crescer em todos: é o sinistro da situação, a falência sistemática da saúde pública, a peste que continua a comer pelas beiradas.
Nove e meia da noite e o homem que espera os outros na saída do mercado se esconde da pouca luz de poste que ilumina a rua. Penso em passar por ele, mas, quando me vê chegando, se coloca entre a passagem e meus futuros passos. Pede dinheiro. Diz que tem fome. Penso que é isso: cada dia que passa, as pessoas sentem mais fome.
Eu não escondo a repulsa, não consigo. Digo para guardar aquilo de volta nas calças. Ele pede desculpas, diz que mostra porque não acreditam nele. Deveria estar mostrando sua moléstia a todos que passaram por ali desde que chegou àquela entrada do mercado. Explico que eu já iria lhe dar dinheiro, e lhe peço para por favor procurar um hospital. Ele disse que está difícil, agora mais do que nunca, ninguém quer lhe atender. O inimigo é outro, muito menor que o reino dos fungos e das bactérias, mas muito maior em gravidade e urgência. Resta a escuridão da passagem, o sequestro da realidade, a compreensão dos demais, o desespero limítrofe entre o apelo e a exposição sexual indecente.
Entrego minhas moedas como quem paga o resgate pela minha vida confortável e sadia. Penso que talvez faça isso de propósito, para agilizar a caridade alheia. Penso que talvez acabe apanhando feio por mostrar o pau por aí como quem não quer nada, e tudo seja ainda pior. Mesmo assim, não me atrevo a dar conselhos para além da ajuda médica.
Caminho com minhas sacolas de mercado nas mãos sem que a imagem me abandone. Tento focar na minha própria vida, nos meus próprios problemas. Cada um que cuide do seu, afinal. Mas não deixo de pensar que aquele saco cheio de pústulas é o estandarte de um país que volta à sua forma original de fome, doenças e desilusão. Deixo de pensar no que poderia ter feito, menos pela inutilidade do exercício e mais porque a cidade me adestrou rápido à indiferença. Tento tirar alguma lição disso, e a que me chega é essa: não foram aquelas pústulas que sequestraram a realidade.