A história da literatura russa, para além de seu significado absoluto, é também a história de suas atribuições ao longo do tempo. Não são poucos os escritores que ganharam novas importâncias conforme a época e o contexto político da Rússia. Tolstói passou a ser um escritor de universalidades a partir de sua preocupação com as desigualdades sociais; Górki, de burguês da geração de prata, emergiu como verdadeiro representante de seu povo durante a época de Stalin; Solzhenitsyn, com seus diários do gulag, se tornou a voz da resistência contra a opressão soviética; e Limonov, de revolucionário espírito livre, é hoje o palhaço político que arranca algumas risadas de quem acompanha o noticiário russo.
Em Moscou, duas estátuas do escritor Nikolai Gógol contam a história por si só. O escultor Nikolai Andreiev foi responsável por fazer o monumento que seria inaugurado no Boulevard Gogolevski em 1909, centenário de nascimento do autor de O Capote. Andreiev, entretanto, chocou ao retratar Gógol em toda sua decadência. O escritor aparece curvado, sombrio, coberto com um longo capote, doente e franzino, como passou a ser visto pelos estudantes que sentavam no mesmo boulevard para ver o mestre passando em direção à casa em que viveu seus últimos anos.
O escritor, que fez pelo espírito nacional em sua prosa o que Alexander Pushkin fez em versos, não poderia ser lembrado como a pobre alma atormentada que se matou de fome em 1852, ponderou assim Stálin.
O escritor, que fez pelo espírito nacional em sua prosa o que Alexander Pushkin fez em versos, não poderia ser lembrado como a pobre alma atormentada que se matou de fome em 1852, ponderou assim Stalin. Um novo monumento em homenagem a Gógol foi erigido no lugar do antigo, desta vez no centenário de morte do autor. A criação de Andreiev foi realocada no Boulevard Nikitsky, no pátio da casa em que Gógol viveu seus últimos dias e que hoje serve como um estranho museu em sua homenagem.
A nova estátua, feita por um terceiro Nikolai – o soviético Nikolai Tomsky –, mostra o escritor ereto, de ar heroico, com um livro na mão e vestimenta impecável. Letras douradas na base de granito dizem aos transeuntes “Para o grande artista russo das palavras, Nikolai Gógol, do governo da União Soviética, 2 de março de 1952”.
A imponência da nova estátua e as palavras em letras douradas impressionam pouco o moscovita que passa pelo Boulevard Gogolevski hoje em dia. A estátua antiga ainda mostra a face real do autor e dispensa apresentações. Em sua base, não há inscrição a não ser uma palavra, que para qualquer amante da literatura há de bastar: Gógol.