Pra Khaoe Rocha, Ryan Augusto e Nicholas Pedroso
Edgar Allan Poe gostaria de distinguir as instâncias da mente humana em três zonas de preocupação: o intelecto puro, para o qual a verdade é o seu norte; o gosto, regido pelo signo da beleza e o senso moral, que busca o dever. A distinção, feita em seu Marginalia, lhe é cara porque permite acertar o descompromisso da poesia fora do belo. Não exclui, entretanto, a interconexão que defesas intelectuais do belo se fazem necessárias – o que nem sempre tem ampla aceitação. Meu amigo Simon, o francês, diz, por exemplo, que defender intelectualmente uma banda como System of a Down é uma tarefa acima dos meios de qualquer um. Fácil descobrir o porquê. O grupo de metal californiano surfou no subgênero do nu metal – o que nem de longe, aliás, se constituiu por um estilo musical, mas, antes de tudo, uma simplificação da mídia especializada para abarcar sob o mesmo guarda-chuva uma cena distinta de todas as outras e unida, se não por esse epíteto malquisto, pelo sincronismo do auge comercial.
Pois muito bem. Associar injustificadamente um termo a algo para imediatamente sem seguida desconsiderar todo o objeto é o caminho fácil das discussões que já estão mortas antes mesmo de começarem (pensem nos termos “petista” ou “socialista” e tudo aquilo que foi descartado em nome da aversão a esses nomes). System of a Down é uma banda de nu metal? Três características distintas marcaram a cena de metal alternativo do fim do século 20: o crossover de gêneros musicais, um direcionamento temático mais íntimo e sentimental e uma preocupação estética que, não raro, suplantou a tentativa de excelência musical. Quanto a essa última, o System of a Down é completamente culpado. Em seu primeiro disco, autointitulado, há uma tentativa de choque pela imagem pessoal, com maquiagens corporais, máscaras e vestuário irreverente. Atribuo isso, contudo, ao Zeitgeist. Era o que todos estavam fazendo afinal, e não só as chamadas bandas de nu metal. Artistas de carreira sólida experimentaram a estética. Assim como o Pantera teve sua fase glam e os Beatles tiveram umas quinze fases em menos de uma década, também o Machine Head e Max Cavalera (com o Soulfly) foram nu metal por um período. Que a banda armeno-americana tenha nascido nesse ambiente e progredido para uma maturidade estética – para diferenciar, digamos, de Slipknot, que se manteve fiel ao showmanship que lhe é peculiar – atesta ser a fase um dínamo de época.
Meu amigo Simon, o francês, diz, por exemplo, que defender intelectualmente uma banda como System of a Down é uma tarefa acima dos meios de qualquer um. Fácil descobrir o porquê.
As duas outras características são bem mais fáceis de refutar e requerem menos explicação. Quanto ao lirismo intimista: inocente. A banda nasceu sob o pretexto de uma única preocupação política: o reconhecimento, pelo governo norte-americano, do genocídio armênio perpetrado pelos turcos durante a primeira guerra mundial. Afora uma balada e outra – legítimas e permitidas em qualquer banda, já que até o Pantera fez This Love – suas letras quase que inteiramente de cunho social. A fusão de gêneros, por sua vez, nunca foi nenhuma exclusividade do nu metal. De fato, é a miscigenação que está qualquer grande marco evolutivo da arte – ironicamente, é aquilo a que as instâncias de poder conservativo da arte mais resistem. O System of a Down, distante associação com o white trash americano, que assimila o rap e o metal no mesmo degrau hierárquico, traz como elemento migrante para sua arte o som de suas raízes caucasianas. A distinta musicalidade armênia, as escalas médio-orientais e a importância de se cantar em naipes é transposta para o suporte da música pesada, das guitarras de três notas, e o vocal que alterna intenções e texturas quer ora pertencer, ora se distinguir. Nada é forçado nessa autenticidade, e se Chico Science, Sepultura e a longa tradição de rock sul americano não fizessem também suas inserções de cor local muito provavelmente estaríamos escutando Kiss até hoje e se perguntando o que mais pode ter lá fora. Um grupo que consegue ser musicalmente rico e contundente ao mesmo tempo é um grupo que deu um passo para além do esperado de sua classe e de suas formalidades. Um som para bater cabelo e dançar na ponta dos pés ao mesmo tempo, a graça e o peso de quem não se pretende sério e também, nem por isso, quer ser encarado como uma piada. E se as melodias do System of a Down não evocam um monte Ararat no meio da Califórnia, o cheiro da dolma quente, dos vinhos anforados, do coentro sobre carne, do conhaque envelhecido e das peles de cabras sobre o preto do metal, talvez o gosto simplesmente não bata. Afinar os ouvidos, bem como o resto dos sentidos, pode ser um exercício empático difícil. Mas reconhecer a ousadia e a autenticidade, isto é algo que só diz respeito à verdade do intelecto.