Parece tão estranho me pegar, subitamente, motivado a escrever uma crônica sobre cocô no chão. É estranho, não sei, mesquinho e pequeno como a vida burguesa no bairro. A alguns quilômetros da minha casa, há uma região com tiroteios diários. O tráfico domina as ruas do centro. As crianças em Aleppo e as chacinas norte-americanas, competindo no noticiário com as monções, terremotos, ciclones tropicais e extratropicais, e cá estou eu, olhando para meus pés neste mundinho à parte e exclamando baixinho cá com meus botões: quanto cocô de cachorro na calçada!
Provavelmente neste bairro uma sacola plástica tem o mesmo poder de uma bandeira branca. Define lados do tabuleiro. O problema é que nunca vejo as peças pretas se movimentando.
Alienação? Não sei, não sei. Procuro observar o entorno do Cristo Rei à procura de inspiração para esse texto, mas só encontro cocô de cachorro. Em minha defesa, só posso dizer que cocô de cachorro é realmente um assunto sério no Cristo Rei. Está em todo lugar, o suficiente para drenar um Van Gogh de qualquer inspiração. Como olhar o céu e a copa das árvores, as cerejeiras em flor, o passear leve das moças quando olhar para baixo é questão de higiene? Van Gogh no Cristo Rei, impossível. De onde surge tanto cocô eu não sei. Quase não temos vira-latas de rua por aqui, e sempre que vejo pessoas passeando com seus cães, elas invariavelmente seguram na mão a sacolinha plástica do cidadão consciente.
Provavelmente neste bairro uma sacola plástica tem o mesmo poder de uma bandeira branca. Define lados do tabuleiro. O problema é que nunca vejo as peças pretas se movimentando. Será o caso de um traidor entre nós? Alguém que passa a imagem do bom-moço catador de cocô quando na verdade passeia com a sacolinha na mão por razões puramente protocolares? Deixar a paranoia bater à porta pode não ser a melhor opção agora. Enquanto pensava alto sobre intrigas internacionais e disfarces com sacola plástica, pisei na merda. Não adiantou nada, melhor ficar na minha e desviar dos presentes que a calçada reserva do que encontrar culpados. Quanto mais mexe, mais fede.