Janet Malcolm é uma mulher de obsessões. A jornalista – uma das grandes autoridades vivas no que se convencionou chamar de jornalismo literário – tem uma fixação pelos dilemas do biográfico, sobre o quanto conseguimos (quase sempre sem sucesso) revelar sobre alguém ao contá-lo sob forma de texto. Mais do que isso, ela é obcecada pelas limitações impostas ao jornalismo pelas ferramentas a que tem acesso, como as visões parciais das fontes, a influência das próprias impressões subjetivas do repórter e as armadilhas engatilhadas pela fabilidade da memória.
E é por isto que esta obra – um compêndio de textos publicados por Malcolm nos últimos 30 anos – se chama 41 Inícios Falsos – Ensaios Sobre Artistas e Escritores (Companhia das Letras, 383 pgs): são a quantidade de “tentativas” que a experiente jornalista emprega para perfilar David Salle, o renomado artista norte-americano que angariou fama nos anos 80 com uma técnica que misturava fotografia e colagem, concretizando uma arte essencialmente pós-moderna. Janet Malcolm não esconde suas impressões sobre Salle (em certo momento do texto, descreve suas telas como “paródias ruins do inconsciente freudiano”); e é justamente esta autoanálise que justifica as (im) possibilidades de falar sobre David Salle de forma fidedigna em seu texto (por isso, as 41 tentativas). Falar sobre algo ou alguém, ela parece nos dizer, é sempre um recorte, um olhar possível (e falível) e, por que não, uma espécie de mentira. Caberia ao bom jornalista manter sempre uma postura honesta em relação à sua atividade.
41 Inícios Falsos, portanto, faz jus ao resto da obra da renomada repórter, e revisita o estilo que construiu sua reputação: um texto que mistura reportagem e ensaio. A reportagem é extremamente rigorosa, e se evidencia na pluralidade de fontes que Janet consulta para tratar do mais banal dos assuntos; já o ensaio se revela nas inúmeras sacadas com as quais costura o texto, sempre com boas tiradas, especialmente no que diz respeito às críticas ao funcionamento do jornalismo.
A diferença deste livro em relação aos outros é que, além de abordar todas as questões que normalmente a interessam, em 41 Inícios Falsos, todos os textos apontam a uma espécie de pano de fundo: Janet Malcolm está aqui interessada em investigar a natureza da criação artística. Para tanto, ela visita personagens de diversas áreas, como a literatura, fotografia e artes plásticas, no intuito de desvendar os cenários e as lógicas que tornaram possível a produção de obras ora brilhantes, ora simplesmente populares.
Assim, a obra é um prato cheio para os interessados nos artistas e em seus processos, construídos com uma acessibilidade e fluência que só são possíveis aos bons jornalistas.
Se na obra O Jornalista e o Assassino, Janet mergulha com frieza nos procedimentos jornalísticos, e em A Mulher Calada, nas pretensões dos biógrafos, na jornada trilhada em 41 Inícios Falsos ela nos presenteia com pequenas pérolas sobre o fazer artístico. Eis um exemplo, de sagaz ironia, citado no ensaio que dá nome ao livro, sobre o criticado David Salle (apresentado por ela como uma espécie de Romero Britto gringo): “Todo amador abriga a fantasia de que seu trabalho está apenas esperando para ser descoberto; uma segunda fantasia – que os artistas contemporâneos consolidados devem (também) ser fraudes – é um corolário necessário”.
Eis outro exemplo de sacada sobre a criação artística, da reportagem em que perfila o fotógrafo alemão Thomas Struth. Ao conhecê-lo, Janet sente-se desconfortável quanto à pouca atenção que recebe do artista, ao que logo conclui: “O pano invisível de alheamento de Struth era tão necessário ao seu fazer artístico quanto o pano real sob o qual trabalhava. Entrar no estado de absorção em que é feita a arte requer reservas de grosseria que nem toda pessoa delicadamente cortês pode invocar, mas que o verdadeiro artista utiliza sem hesitar”.
Nos 16 textos, a obra vai do cânone ao artista mais popular com igual interesse. Destacam-se especialmente os ensaios sobre os fotógrafos, como o texto sobre Julia Margaret Cameron, a tia de Virginia Woolf que trocou a vida de dona de casa de classe alta por uma trajetória na fotografia artística de mulheres, ou a inspirada discussão sobre a fotografia de nus – no qual Janet Malcolm concluiu que a fotografia, “da qual se esperava que chegasse à cena como uma espécie de missão de resgate do corpo, empenhada em restaurá-lo ao seu estado natural nu, na verdade apenas perpetuou e refinou as estilizações e expurgos da arte”.
Dentre os recortes biográficos dos perfis, 41 Inícios Falsos ainda traz algumas análises literárias de fôlego. Curiosamente, as mais brilhantes são as destinadas a obras consideradas menores, como a investigação que faz sobre a série de romances Gossip Girl, de Cecily Von Ziegesar. A obra – cujas estratégias narrativas são comparadas a Lolita, de Nabokov – teria angariado sucesso justamente por ser uma obra adolescente apenas na aparência, pois seria de fato direcionado a “um adulto letrado, até mesmo com cultura literária”. A análise apresentada por Janet Malcolm nos convence disto, e traz inclusive o desejo de ler os livros.
Assim, a obra é um prato cheio para os interessados nos artistas e em seus processos, construídos com uma acessibilidade e fluência que só são possíveis aos bons jornalistas. Conforme descreveu o crítico Álvaro Pereira Junior, a descrição feita por Janet ao editor William Shawn (“ele jamais dizia alguma coisa que não fosse profundamente inteligente e totalmente inteligível”) parece falar dela mesma. É pela competência na execução deste estilo híbrido – que consolida uma obra essencialmente jornalística, mas que não se exime de exibir as conclusões sagazes daquela que a escreve – que Janet Malcolm permanece uma referência a todos os seus fiéis leitores.