Julio Cortázar viveu e morreu como se estivesse em um de seus contos. No próximo dia 26 de agosto, comemora-se o aniversário de nascimento daquele que, ao lado de Borges e Sabato, forma a Santíssima Trindade da literatura argentina. Tão universal quando o autor de Ficções, Cortázar sempre foi um sujeito ímpar: muitíssimo alto e amante de jazz – algo nem sempre era visto com bons olhos naqueles anos.
Bestiário é uma estreia como poucas. Do primeiro conto, “A Casa tomada”, ao último, o homônimo, Julio Cortázar cria um interessante retratado como antecipação do boom latino-americano. Ainda que seu maior feito tenha sido o romance-mosaico Jogo da Amarelinha, é impossível não colocá-lo como nome fundamental do conto. Seja por Histórias de Cronópios e de Famas ou Final de Jogo, Cortázar parecia ter o ponto certeiro para atingir o leitor, e capturá-lo para seu universo pouco comum.
Na mão de Cortázar, somo Isabel para Nino, do conto “Bestiário”, apenas um brinque (claro, digo isso no sentido mais bem intencionado possível). Para o leitor médio, o texto de Cortázar é quase inatingível. Explico o porquê. De toda a sua simplicidade e absurdo, o escritor faz dos seus personagens um reflexo daquilo que mais tememos e do que não queremos aceitar. Enxergar de maneira tão lúcida exige preparação – disposição e quê de masoquismo.
Existe sempre um quê de dívida dos escritores latinos com Cortázar, Borges e Bolaño, como se houvesse uma maldição bendita que fizesse sempre volta ao(s) mesmo(s) lugar(es).
Como Oliveira, estamos todos atrás de Maga, ao mesmo tempo, em que tentamos nos livrar dela. É uma dicotomia estranha, como um desenho de Escher. De um ponto vamos a outro que, aparentemente, nos distancia daquele primeiro para, sem aviso, sermos lançados novamente ao início. Imaginar a lógica de Cortázar é como desvendar a Esfinge, pois ele é um escritor de detalhes. As Armas Secretas, cujo conto “As Babas do Diabo” inspirou o longa Blow-up, é um carrossel detalhado de absurdos e neuroses, entretanto, tudo que está ali poderia ter sido vivido por mim ou por você.
O que há de mais irreal em Cortázar faz parte, na verdade, da sua própria vida. Das suspeitas – leia-se quase certeza de ter morrido em decorrência da AIDS, nunca diagnosticada e, supostamente, contraída numa transfusão de sangue – à viagem com a esposa Carol Dunlop descrita em Los Autonautas de la Cosmopista.
O improvável é a matéria-prima do escritor. Os anos que passou em Paris e o desprezo que alguns argentinos têm pela ausência do filho querido são uma ponta desse grande iceberg literário que foi Julio Cortázar. Contista, romancista, tradutor, dramaturgo, professor de literatura, polemista, músico de jazz: são muitos os homens dentro de um só corpo e um só espírito.
Existe sempre um quê de dívida dos escritores latinos com Cortázar, Borges e Bolaño, como se houvesse uma maldição bendita que fizesse sempre volta ao(s) mesmo(s) lugar(es).