Uma história, depois que é contada, já não pertence mais a quem a viveu. Do segundo após ganhar o mundo, a história é de todos. Tem sempre muitos pais e possibilidades. Pouco importa o que realmente é verdade e o que aconteceu de fato. É assim com o mitológico encontro entre o criador da bossa nova e os hippies comandados por Morais Moreira, resgatado pelo escritor Sérgio Rodrigues no conto de abertura d’A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos que, como um LP, se desdobra em lados A e B com uma bônus track.
No conto homônimo, Rodrigues parte de um trecho da narrativa “O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, do seu xará, Sérgio Sant’Anna, para recriar o a visita regada a moqueca, maconha e ao canto quase mudo de João. O narrador arredio, com os olhos marejados e chapados, prefere o sossego de uma rede ao som do violão miúdo de “Bim bom”. É como se Deus aparecesse diante dos crentes na Terra Prometida e lavasse os seus pecados.
O segundo conto do primeiro lado revisita a obra máxima de Machado de Assis, Dom Casmurro, a partir de uma cena que não está no livro do Bruxo do Cosme Velho. Em “Vos preposterum”, que encerra a primeira metade do livro, Sérgio Rodrigues desenleia o novelo das intrigas da Inconfidência Mineira, mas cujo conflito maior está em um poema erótico atribuído a um dos conspiradores.
No lado B, A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos navega pelo tom experimental e metalinguístico, jogando com o leitor e com a elasticidade formal da língua brasileira – como Sérgio Rodrigues gosta de se referir ao nosso idioma. São textos que vagueiam pelas contradições e ironias do fazer literário como “Conselhos literários fundamentais”, um antimanual de literatura, e “Cenas da vida zooliterária, volume 1” que bem pode guardar uma ligação inconsciente com a piada de Woody Allen – que jura tê-la roubado dos Irmãos Marx – sobre jamais fazer parte de um clube que o aceitasse como membro.
Em “Breve história de alguma coisa”, o mais metaliterário de todos, o autor d’O Drible faz um diálogo dos pontos de contato entre as narrativas clássica e contemporânea. Por fim, a Terceira Margem, que fecha o livro com o folhetim “Jules Rimet, meu amor”, escrito para o Le Monde durante a copa de 2014. Na novela, um escritor aficionado por futebol investiga o desaparecimento da taça em 1983 e acaba por se envolver em uma trama rocambolesca.
Com doses de humor e rigor narrativo, Sérgio Rodrigues volta às formas breves, traçando – como o pai da pop art – uma nova linha entre os limites da criação e da apropriação.
O conceito por dentro
A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos é um livro que reconstrói histórias. Sérgio Rodrigues busca episódios e os desdobra, explora as inúmeras ampliações possíveis como o fotógrafo de Blow up e encontra um pontinho ainda virgem, capaz de dar em alguma coisa. É como dizia Ricardo Piglia: o bom conto é aquele que deixa a aberta a possibilidade de recontá-lo e retomá-lo. E Rodrigues reconhece e esquadrinha as pontas deixadas pela literatura ou pelo que entende-se como realidade.
Elza, a garota e O Drible, cujos enredos também zarparam de eventos reais, já transubstanciavam fatos para elevá-los à máxima potência narrativa. A verdade e a invenção são meras questões conceituais e formais. Andy Warhol foi o primeiro grande artista a duvidar da ideia do real e a abraçar a perspectiva de que seríamos capazes de fabricá-la em troca de prazer estético ou físico.
O João Gilberto criado por Rodrigues é, em certa medida, o arquétipo do mestre bossa-novista. Por outro lado, quando Capitu aparece em “A Fruta por dentro”, a personagem machadiana rompe com a ideia de mulher dissimulada e de olhos de ressaca. Ali, é só um poço de dúvidas e insegurança juvenil. Quando trata do roubo da taça, A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos é um exame de consciência, uma tentativa de reconciliação para entender como um povo apaixonado por futebol poderia impor a si tamanha blasfêmia.
Com doses de humor e rigor narrativo, Sérgio Rodrigues volta às formas breves, traçando – como o pai da pop art – uma nova linha entre os limites da criação e da apropriação.
A VISITA DE JOÃO GILBERTO AOS NOVOS BAIANOS | Sérgio Rodrigues
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 144 págs.;
Lançamento: Junho, 2019.
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