Era uma vez um menino que matou o próprio irmão numa brincadeira com facas no quintal. A mãe deles estava dando banho no bebê no andar de cima e quando ouviu a gritaria dos filhos lá fora, desceu as escadas correndo para ver o que havia acontecido. Em meio ao sangue e ao nervosismo tentou tirar a faca das mãos do garoto, mas acabou o matando. Quando voltou em prantos para dentro de casa, percebeu que havia esquecido o bebê na banheira e ele tinha morrido afogado. Ela, então, não viu outra saída a não ser enforcar-se. Poderíamos parar a desgraceira por aqui, mas é que o pai dessa família chegou do trabalho, viu aquela cena horrível, não conseguiu superar tamanha tragédia e acabou morrendo de desgosto.
História fofinha, não? Poderia ser um filme do Lars von Trier, mas é um conto infantil dos Irmãos Grimm (século XIX), chamado, veja só que sugestivo, “Quando Crianças Brincam de Açougueiro”.
A literatura infantil, tal como a de gente grande, nasceu das tradições orais, das histórias contadas pelas pessoas comuns, geralmente iletradas. Volta e meia alguém com mais estudo resolvia pesquisar e anotar essas narrativas, então, com o passar dos anos, foram pipocando nomes que seriam lembrados até hoje, como os irmãos citados ali em cima e também La Fontaine, Charles Perrault e Fénelon. A importância deles e de vários outros autores é muito maior na questão da curadoria, de reunião de informações, bem como o aspecto sociolinguístico de resguardar a memória oral de tais narrativas, do que de criação em si. Em resumo, as histórias já existiam, eles “só” colocaram no papel e foram reformulando tudo com o passar do tempo.
Charles Perrault (XVII), por exemplo, escreveu um livro que hoje encontramos com o título Contos da Mamãe Gansa, mas que havia sido lançado como Histórias ou narrativas de tempo passado com moralidades. Ele, inclusive, nem assinou o livro na época, pois pegava meio mal entre os intelectuais esse negócio de escrever para crianças, e resolveu atribuir a autoria da obra a seu filho.
A importância deles e de vários outros autores é muito maior na questão da curadoria, de reunião de informações, bem como o aspecto sociolinguístico de resguardar a memória oral de tais narrativas, do que de criação em si.
É de Perrault uma das versões mais antigas e macabras do famoso conto Chapeuzinho Vermelho. Nela, Chapeuzinho segue feliz e saltitante rumo à casa da Vovó e quando chega lá, percebe que ela está meio estranha, pois pede para que a menina tire a roupa (!?) e se deite com ela na cama. Depois a garota percebe os olhos grandes, dentes grandes, etc. O Lobo, como sabemos, devora a avó e a netinha vira a sobremesa. Depois disso, sabe o que acontece? Nadinha de nada. É isso, ele devora as duas e não aparece ninguém pra salvá-las. Já era, perdeu. Séculos depois os Irmãos Grimm tentaram dar uma amenizada na história e enfiaram o Lenhador no meio da treta (amenizaram mais ou menos, pois na primeira versão deles, após as duas coitadas serem salvas a machadadas, eles enchem a barriga do Lobo de pedras, ele não consegue andar e acaba morrendo. Pelo menos aqui o bem vence o mal e assim temos menos crianças deprimidas).
Os Grimm reescreveram todas as histórias (são mais de cem) algumas vezes para adaptá-las aos pequenos leitores, mas antes disso, nas versões tidas como originais, nos deparamos, por exemplo, com o fato de que a Bela Adormecida foi estuprada pelo príncipe; que as irmãs malvadas da Gata Borralheira cortaram os próprios dedos para fazer caber os pés cheios de sangue no sapatinho de cristal; que o príncipe engravida a Rapunzel, depois arranca os próprios olhos e se joga da torre; que a princesa não beija o sapo, ela o atira contra a parede para que ele exploda; e assim por diante.
Para quem cresceu com uma visão “disneylândica” da infância, essas versões estilo Quentin Tarantino podem soar meio insanas, pois o que a maioria de nós leu/assistiu foram aqueles textos reescritos pelos Irmãos Grimm. E antes deles, lá no início, esses livrinhos que hoje os pais leem para os seus filhos não tinham exatamente a criança como seu público-alvo (no caso de Perrault, o público eram as mulheres, então suas histórias eram cheias de “ensinamentos morais”, tal como nas fábulas, que visavam fazê-las se comportarem de uma determinada maneira e não caírem na lábia de qualquer malandrão. “Encontrar o Lobo” era sinônimo de perder a virgindade, inclusive). Isso de ver a criança como criança mesmo, do jeito que a gente vê hoje, e não como praticamente um anão, só ocorreu no período da Revolução Industrial, com a ascensão da burguesia e aquela coisa toda das aulas de História. Foi ali que a criança deixou de ser vista como um mini adulto, pois percebeu-se que ela não poderia trabalhar nas fábricas imundas (até porque isso agravava o desemprego e a miséria) e passou a representar o centro da família, um ser frágil que requeria todos os cuidados, etc.
A ideia de escrever livros para crianças poderia ter uma origem nobre e emocionante, inclusive em alguns momentos pode até ter sido, mas na real mesmo, os adultos perceberam que os pequenos, agora alfabetizados, pois a escola passara a ser obrigatória para todas as classes, poderiam representar um mercado consumidor importante. Basicamente eles olharam para aquelas carteiras cheias de alunos e ouviram um som de caixa registradora no subconsciente, foi então que resolveram entupir a criançada de livros e McLanches Felizes.
Em resumo, lá pelas tantas saíram o sangue e o sexo, e entraram o amor idealizado e as grandes virtudes. Boa parte das histórias ficaram mais fofinhas e coloridas, muita gente entrou nessa só para ganhar dinheiro, mas pelo menos assim evitou-se que toda uma geração crescesse tendo que tomar Rivotril.
Bibliografia
Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos, de Jacob e Wilhelm Grimm (editora Cosac Naify);
Literatura Infantil Brasileira, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman (editora Ática);
Contos da Mamão Gansa, de Charles Perrault (editora L&PM).
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