“NO FINAL ELA MORRE E ELE FICA SOZINHO, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura”
O chileno Alejandro Zambra é aclamado pelo público e pela crítica como uma das grandes sensações da literatura latino-americana atual. No mês passado, a Cosac Naify lançou no Brasil Meus Documentos, aguardada coletânea de contos do autor. No entanto, o assunto de hoje é Bonsai, livro-árvore que Zambra plantou, sem flores ou floreios, no terreno da prosa contemporânea.
À primeira vista, a trama de Bonsai mostra-se até que bastante simples. Eis uma história de um amor; um desses amores em que dois se esbarram e se envolvem e se apaixonam; um desses amores em que dois desistem da leitura, viram a página, rumam para outros livros, histórias outras. Julio e Emilia. Nada muito complicado. A suposta simplicidade do enredo é, porém, uma armadilha em forma perfeita. O parágrafo que dá início à narrativa sugere a projeção completa do livro-árvore. Em verdade, é apenas a sua semente.
O resto é literatura. Desde a primeira página, o autor chileno cerca o leitor em um mosaico de digressões literárias; passagens de um ou outro livro, lido ou inventado, que se proliferam nos campos férteis da imaginação ou da vida sexual de um casal leitor.
Alejandro Zambra cultiva em sua jardinagem uma narrativa concisa, precisa, preciosa, valendo-se da ferramenta quase óbvia da polissemia das palavras.
O resto é literatura. De “Tantalia”, o segundo capítulo de Bonsai, brota metaliteratura. Nele, o conto “Tantalia”, do argentino Macedonio Fernández, é o prenúncio do fim de um amor, esse amor entre dois, dois que poderiam ser Julio e Emilia. O enredo: um casal faz de uma planta o símbolo de seu relacionamento. Com o passar do tempo, o casal se dá conta de que o amor deles fatalmente irá acabar quando a planta morrer. Então, camuflam aquela plantinha em meio a outras idênticas, para que não presenciem o fim. Mesmo com o artifício, a perda e a morte da planta-amor são certas. Uma história, enfim, que os afeta profundamente. Uma história que se transmuta não em morte, mas na vida. A vida dos dois.
Bonsai (Jirafa / Rizoma Films, 2011), filme chileno com roteiro de Christian Jiménez e Alejandro Zambra.
O resto é literatura. O resto é Julio. Julio sem Emilia. Um rapaz que começa a escrever um livro que não é seu. Uma representação. Uma projeção de livro-árvore. “Escrever é como cuidar de um Bonsai”.
O resto é literatura. O resto é o bonsai; réplica de árvore e, ainda assim, árvore; réplica de árvore que, ainda assim, se revela completa. Complexa. Árvore mínima, metonímia, de uma árvore maior, um livro maior.
Como a dor que se talha e se detalha, o processo de cultivo do bonsai é metáfora da criação literária. O livro-árvore é, pois, talhado e detalhado em uma escrita cuidadosamente lapidada, sem quês nem porquês. Clara como o que se vê, profunda como o que não. Literatura que se frui como quem admira a beleza compacta de um bonsai.
Zambra cultiva em sua jardinagem uma narrativa concisa, precisa, preciosa, valendo-se da ferramenta quase óbvia da polissemia das palavras. Tal qual Julio (cuja história não termina), “procura a maior sistematicidade, invadido que está por um vislumbre de plenitude”. Sem sobras, faz revelar uma única, porém riquíssima, textura na paisagem. Simples – mas em nada simplório -, o livro-árvore se ergue surpreendente: pequeno em sua grandeza, grande em sua pequenez.
Há quem diga que os “romances de capítulos curtos, de quarenta páginas, que estão na moda” sinalizam a morte das grandes narrativas, árvores da natureza. Alejandro Zambra mostra que a verborragia é dispensável ao romance. Seu Bonsai é o verso mínimo, a prosa poética, o pouco que diz muito. Da podagem, o resto. E o resto é literatura.
O contra dessa capa representa uma bravata: leia mais.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.