Em 1994, a região de Ruanda e Burundi, dois países africanos, foi palco de um massacre conhecido como Genocídio Tutsi. O resultado é ainda incerto, mas as estimativas variam entre 500 mil e um milhão de mortos, sem contar as vítimas de violência sexual e as cicatrizes que ficaram na região.
De maneira bastante simplificada, o genocídio foi o resultado da rivalidade étnica fomentada pela Bélgica, país que colonizou a região. A estratégia foi de acirrar os conflitos entre as duas castas da região, os tutsis e os hutus, favorecendo os primeiros em detrimentos dos outros e criando diferenças artificiais na região. Nesse cenário, a situação socioeconômica da região também servia como fator de agravamento.
Por isso, quando os hutus conseguiram retirar o poder dos tutsis em meados do século XX, há a estruturação de uma política de vingança e agressividade contra o grupo outrora beneficiado – que culminará no genocídio citado.
Hoje, é crime negar o massacre ou a tentativa de fazer qualquer revisionismo histórico, mas a resolução desse crime nunca foi feita de maneira apropriada. Em sua maioria, os assassinos eram “cidadãos comuns”. Era vizinhos, colegas ou companheiros da aldeia que se armaram com suas enxadas e assassinaram os tutsis que encontraram.
É ao relembrar das minúcias e do cotidiano de aldeia tutsi que vivia nesse momento político que a escritora Scholastique Mukasonga escreve Baratas (tradução de Elisa Nazarian), um livro de memórias publicado no Brasil pela editora Nós. Scholastique já teve outros dois romances traduzidos, A mulher de pés descalços e Nossa Senhora do Nilo, também publicados pela Nós.
Hoje morando na França, Scholastique nasceu e viveu entre Ruanda e Burundi, cruzando as fronteiras quando lhe era permitido e mais seguro, se arriscando na brousse – a vegetação característica da região com seus arbustos espinhentos que Mukasonga nos apresenta. Foi lá onde ela aprendeu suas tradições, comeu e, também, onde pode começar os estudos da profissão que hoje exerce, de Assistente Social.
No entanto, o que Mukasonga escreve é permeado por uma certa aura de leveza. Não que ela amenize a gravidade do conflito, poupe cenas de violência ou evite se aprofundar na situação, mas é sua postura que permite que a história seja um pouco mais palatável.
Como se estivesse conversando com a página, a escritora tusti de Ruanda transcreve suas memórias – e nos conta, também, como as lembranças podem ser instáveis.
Por exemplo, ao retratar o cotidiano miserável da aldeia em que viviam e das restrições impostas, ela não deixa de destacar as tradições e a feitura das bebidas fermentadas e das pequenas festas que eram possíveis de serem realizadas.
Em seu livro, existe uma preocupação de retratar o lado humano das inyenzi, palavra usada pelos hutus para descrever os tutsis e que dá nome ao livro, já que pode ser traduzido como barata ou algum inseto asqueroso e insignificante. É a alma desse cotidiano que molda a forma do livro.
Em muito essa postura lembra a de Svetlana Aleksiévitch no começo de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, livro em que ela colhe relatos de mulheres soviéticas que lutaram na 2ª Guerra Mundial. Ali, a escritora se define como uma “historiadora da alma” e se presta a registrar as memórias, a história oral das mulheres que viveram e lutaram no conflito.
Na abertura do livro, Svetlana comenta sobre como os depoimentos femininos são diferente dos masculinos, geralmente mais violentos, agressivos e parecidos com a historiografia oficial. A escritora bielorrussa afirma que as mulheres têm uma experiência diferente ao viver a guerra – e é por isso que ela parte para registrar esses relatos, que muitas vezes tratam da beleza, do casamento ou de aspectos mais sutis sobre a experiência humana em situações extremas.
É essa a perspectiva que me parece brotar do relato de Scholastique Mukasonga. Como se estivesse conversando com a página, a escritora tusti de Ruanda transcreve suas memórias – e nos conta, também, como as lembranças podem ser instáveis, como os casos podem ter acontecido de maneira diferente, ou que ela tenha se equivocado.
No entanto, o que me parece mais importante é a existência desse registro escrito da sua memória. Digo isso porque ao longo do livro descobrimos que Scholastique e um de seus irmãos, André, foram “escolhidos para sobreviver”. Depois de uma reunião de família, eles foram eleitos como membros mais aptos para fugir da aldeia e carregar consigo a memória da família. E, de fato, o fazem.
Com Baratas, Scholastique mantém viva a chama de sua família. Registra o nome e o passado daqueles que perdeu, dos que pereceram no genocídio e constrói um memorial para todos aqueles que contribuíram para a sua história. O que não some, no entanto, é a carga e a culpa que carregam aqueles sobrevivem.
BARATAS | Scholastique Mukasonga
Editora: Nós;
Tradução: Elisa Nazarian;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Julho, 2018.