Sentado na cadeira de dentista, o banqueiro de jogo do bicho faz uma proposta inusitada ao cirurgião: pede que este arranque todos os dentes de sua boca, pois, a partir de agora, pretende usar uma dentadura de ouro. Diante do espanto e da recusa do dentista, o bicheiro insiste, garantindo que pagará pelo serviço. “Quero uma boca todinha de ouro”, sentencia, até convencer o dentista. O tom de ironia presente já na cena inicial acompanha o desenrolar de Boca de Ouro (Editora Nova Fronteira, 2004), peça em três atos escrita em 1959, por Nelson Rodrigues (1912 – 1980).
Com ação transcorrida em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, no final dos anos cinquenta, Boca de Ouro encena a história de um bicheiro suburbano que, ao mudar de vida, resolve ostentar uma dentadura de ouro como símbolo de sua ascensão. Além da dentadura, “Boca” manda construir para si um caixão, também de ouro. A vontade de mascarar a própria origem (o protagonista é ressentido pelo fato de ter nascido “na pia de uma gafieira” e ter sido abandonado pela mãe) faz de Boca de Ouro um personagem construído com certo estereótipo do malandro carioca, assassino e aproveitador cruel que utiliza a fama proveniente de seus crimes para seduzir e chantagear mulheres casadas.
Pode-se dizer que em Boca de Ouro estão presentes alguns dos temas recorrentes na obra de Nelson Rodrigues, como a violência, as tragédias familiares, o ciúme, a traição, os crimes passionais, as ambições frustradas, etc.
Outro tema caro ao autor é o papel da imprensa na sociedade. Através dos personagens do diretor do jornal e do repórter, a peça expõe as manobras que orientam, em muitos casos, a produção de conteúdo de veículos sensacionalistas. Nesse ponto, especificamente, a crítica de Nelson Rodrigues é ainda bastante atual.
Além do bicheiro “Boca”, outra personagem fundamental é Guiomar, ou dona Guigui, ex-amante de Boca de Ouro e companheira de Agenor. É através de sua entrevista e das três diferentes versões sobre “Boca” (ora condenando, ora absolvendo, ora vitimando-o) que o leitor percebe a instabilidade psicológica e emocional da entrevistada. Com a morte do bicheiro, o repórter Caveirinha é enviado pelo jornal O Sol para entrevistar dona Guigui, com a intenção de que ela revele algum fato desconhecido sobre o falecido. “O Boca de Ouro matou gente pra burro e quem sabe se ela não conta a você, com exclusividade, uma dessas mortes, um crime bacana?”, instiga o diretor do jornal.
No momento em que Caveirinha encontra dona Guigui para entrevistá-la, esconde o fato de que Boca de Ouro está morto. Só de ouvir falar o nome do ex-amante, Guigui se antecipa em afirmar que não o vê há muito tempo. Incitada pelo repórter a contar “um crime bacana”, Guigui revela os detalhes da morte de Leleco, suposta vítima de Boca de Ouro. Ouvindo a mulher expor o crime do bicheiro, Agenor teme uma represália e pede para a mulher cessar com as tais revelações, finalizando o primeiro ato da peça.
Em outro momento, já no segundo ato, Caveirinha esclarece que Agenor não precisa temer, pois Boca de Ouro está morto. A partir daí, dona Guigui se desespera e pede para o repórter não publicar suas declarações, muda completamente o conteúdo de sua entrevista, tentando absolver Boca de Ouro do crime que antes ela o havia acusado. “Eu contei aquilo porque, você sabe como é mulher… Mulher com dor de cotovelo é um caso sério! Escuta, mulher não presta, é um bicho ruim, danado, bicho danado!”
Desse modo, o leitor pode depreender que as oscilações no depoimento de dona Guigui expressam o modo como, a depender das circunstâncias, o ser humano pode modificar o teor de seu discurso ao sabor das situações. A morte de Boca de Ouro (encontrado na sarjeta sem a sua dentadura dourada) coloca o bicheiro na condição de um criminoso comum, como se a ausência da dentadura definisse a ascensão e o declínio de um contraventor da zona norte do Rio.
Ainda que a tragédia carioca contenha alguns clichês na construção de personagens e termine com certa ambiguidade, Nelson Rodrigues consegue construir uma obra cujo final em aberto reflete temas atuais e universais, como o papel da imprensa na construção e mitificação de criminosos, a mudança das versões dos fatos de acordo com as conveniências, as relações motivadas por interesses escusos.
Três anos após a estréia da peça em São Paulo, em 1960, o cineasta Nelson Pereira dos Santos adaptou para o cinema a tragédia de Nelson Rodrigues, com Jece Valadão no papel de Boca de Ouro e Odete Lara interpretando dona Gugui.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]BOCA DE OURO | Nelson Rodrigues
Editora: Nova Fronteira;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Agosto, 2012 (2ª edição).
[button color=”red” size=”small” link=”https://amzn.to/2tYl1RH” icon=”” target=”true” nofollow=”false”]Compre na Amazon[/button][/box]