Considero que Schulz seja um dos maiores artistas do século XX, e não apenas do cenário artístico polonês.
Nascido em Drohobycz, na noite de 12 de julho de 1892 e assassinado por um nazista na mesma cidade, muito provavelmente em 19 de novembro de 1942, Bruno Schulz era pintor e, principalmente, escritor. No sentido grego da palavra, Schulz era um poeta (era alguém que criava coisas).
Já se escreveu sobre ele aqui na Escotilha (aqui e, também, aqui). Agora, porém, pretendo escrever uma série de textos, dedicados à sua vida, à sua obra e às muitas leituras possíveis dela.
A vida de Schulz, em comparação com a de artistas que costumam frequentar o imaginário, deve ter sido incrivelmente chata. Marek P. Markowski, teórico que faz uma leitura sobremodo interessante de sua obra, chega a afirmar que Schulz pertence àquela estirpe dos artistas “sem vida”, pois a teriam “transformado em arte”.
De fato, não há muita informação sobre a vida pessoal do artista – o que temos resulta, basicamente, de cartas (a obra epistolar schulziana é tão vasta quanto interessante) e de relatos de pessoas que com ele conviveram.
Consta que era uma criança “extremamente tímida” (o mesmo Markowski), que tinha poucos amigos e rendimento escolar acima da média, especialmente em polonês e desenho.

Consta que em sua casa se falasse apenas polonês (Jerzy Ficowski, além de interessantíssimo poeta, foi um dos maiores estudiosos de Bruno Schulz). No texto original, esta afirmação fica tão destacada que ela me causa dúvida – a esta dúvida se soma a uma certa dificuldade que tenho em compreender como uma criança de oito anos conseguiria entender, ainda que em parte, uma balada de Goethe, em alemão, sem saber alemão muito bem. Palavras do próprio Schulz:
“Há conteúdos de algum modo predestinados para nós, preparados, esperando por nós no prólogo mesmo da vida. Assim recebi a balada de Goethe aos oito anos com toda sua metafísica. Por meio do alemão apenas em parte compreendido, capturei, pressenti o sentido e estremecido até o fundo chorava, quando minha mãe a lia para mim” (a tradução é minha)[1].
Somemos informações não necessariamente abundantes sobre a vida de Schulz e afirmações como estas que trouxe às senhoras e senhores, e teremos condições ideais de temperatura e pressão para o surgimento de uma “aura mítica” ao redor da vida do escritor.
Witold Gombrowicz ao relatar, em seus Diários, as impressões que teve de seu primeiro encontro com Schulz, escreve: “ele era pequeno, extraordinário, quimérico, concentrado, tenso, quase ardente”.
Marek P. Markowski, teórico que faz uma leitura sobremodo interessante de sua obra, chega a afirmar que Schulz pertence àquela estirpe dos artistas “sem vida”, pois a teriam “transformado em arte”.
Começo da digressão. Gombrowicz é um nome que costuma aparecer junto ao de Schulz como um dos “três mosqueteiros” do entreguerras polonês (o terceiro seria Stanisław Ignacy Witkiewicz, a quem Schulz endereçou o trecho sobre a balada de Goethe). Fim da digressão.
À nossa fórmula que resulta no que chamo de “aura mítica”, portanto, devemos acrescentar um terceiro elemento: o modo que Schulz tinha de pôr-se no mundo.
O quarto elemento do composto químico-místico-literário a que chamei de “aura mítica” é a obra de Schulz. Seus dois livros e quatro contos publicados em vida falam sobre a vida de um menino em uma cidadezinha. De pronto, a leitura que se faz é: ora, a cidadezinha é Drohobycz, o petiz é Schulz.
Provavelmente, esta é uma leitura possível, ainda que eu a considere simplificadora. Embora seja verdade que a topografia da cidade em que as personagens vivam coincida em muito com Drohobycz, este nome não aparece nenhuma vez nos contos. Ainda que seja verdade que haja muitas coincidências entre os fatos narrados nos contos e eventos localizáveis na vida de Schulz, parece que esta leitura “olha as árvores, e não a floresta”. Ou, melhor ainda, estamos caindo numa “armadilha”: olhando árvores, quando o projeto artístico de Schulz queria investigar o subsolo que as sustenta. Schulz escreve no conto “A primavera”:

“Quando as raízes das árvores querem falar, quando se amontoa sob a grama uma grande quantidade de passado, de antigos romances e histórias muito velhas, quando sob as raízes se acumulam demasiados sussurros ofegantes, a polpa inarticulada e o fôlego escuro que precede cada palavra – o córtex das árvores escurece e se desmancha rugosamente em escamas grossas, em leivas profundas, abre-se a medula em poros escuros como a pele de um urso. Caso se mergulhe o rosto na pele fofa do entardecer, por um instante tudo fica completamente escuro, surdo e sem fôlego, como sob uma tampa. Nesse momento é preciso encostar os olhos, como sanguessugas, na mais negra escuridão, violentá-los levemente, passá-los pelo impenetrável, pelo solo surdo, de um lado a outro – e eis que, de repente, estamos na meta, na outra face das coisas, estamos no fundo, no Subsolo. E vemos…”
Quais são as outras leituras possíveis? Como foi a vida de Schulz? O que comia e onde vivia? Estas e outras inquietações ficam para os próximos textos.
Aproveitando a oportunidade: feliz ano-novo!