“Casa tomada”, conto que abre Bestiário, é um dos relatos mais intensos e subjetivos de Julio Cortázar. Como afirma na frase que nunca disse – que no conto o autor precisa vencer por nocaute –, Cortázar leva o leitor à lona em meia dúzia de página. Um casal de irmãos, com a idade já avançada, é encurralado por desconhecidos que tomam a casa – “que além de espaçosa e antiga”, (…) “guardava a lembrança dos nossos bisavôs, do avô paterno, dos nossos pais e de toda a nossa infância” – cômodo por cômodo.
Quando Cortázar publicou Bestiário já estava exilado em Paris, cidade que adotaria no lugar de sua Buenos Aires natal durante os anos de Perón. Dessa divergência nasceria também a grande diatribe com Borges, peronista ferrenho – que só admitiria o erro muito tempo depois, próximo da morte – e que seria o primeiro a publicar o conto, em 1944, na revista Los Anales de Buenos Aires. “Escrevi esses contos sentindo sintomas neuróticos”, diria mais tarde. Publicado uma década antes do magistral O Jogo da Amarelinha, Bestiário anunciava uma das mais importantes vozes da literatura latino-americana e “Casa tomada” era o cartão de visita.
O fato é que, queira ou não, o conto faz uma ponte inexorável com os nossos dias, ainda que esteja longe de ser um texto crítico em sua superficialidade – mas está lá o catálogo escusas que ofertamos todos os dias.
Como muito de seus relatos, este também carrega uma energia metafórica intensa e uma óbvia alusão a “A Queda da casa de Usher”, de Poe, um dos autores favoritos do portenho. A presença do fantástico – os invasores anônimos – é uma marca pessoal de Cortázar, que a imprimiria dali em diante em muitos de seus textos. A questão da memória – os irmãos são mais apegados à morada pelas lembranças que pela função presente dela – percorre os parágrafos como leitmotiv da narrativa.
É impossível desvincular essa noção memorialista da concepção cortazariana. “Continuidad de los parques”, de Final de juego, um texto circular – uma espécie de palíndromo narrativo – e “As Babas do diabo”, de Todas as armas – que iria inspirar o inabalável Blow up, de Antonioni – são pontas desse grande iceberg estrutural. De tempos em tempos, à medida em que a casa lhes é tomada, os irmãos são acossados e se conformam com a sua situação. Reviram os olhos a princípio – lamentam os livros e outras coisas que ficam para trás –, mas nada que não seja possível de gerar conformismo.
“Casa tomada” é uma colcha de retalhos de interpretações e alegorias. É difícil escolher uma apenas. É impossível dizer qual passava pela cabeça do autor e se passava alguma. O fato é que, queira ou não, o conto faz uma ponte inexorável com os nossos dias, ainda que esteja longe de ser um texto crítico em sua superficialidade – mas está lá o catálogo escusas que ofertamos todos os dias. Está lá.