Por Otavio Linhares*, especial para Escotilha
Desde que comecei meus estudos na área de humanas, na Faculdade de Filosofia, em 1996, na PUCPR, uma perturbação intelectual sempre me acompanhou: nunca acreditei que a história política que me foi ensinada em todos os anos de colégio era de fato aquela que eu poderia chamar de verdadeira. Seja lá o que verdadeira quer dizer.
Havia em mim a necessidade de provar que uma guerra jamais havia tido como estopim os motivos/fatos que eram narrados nos livros de história. Aquelas coisas grandiloquentes como assassinatos, invasões, tratados e afins… Tudo besteira. Pra mim, as guerras sempre haviam sido iniciadas dentro de casa, nas relações afetivas de primeira instância, entre o quarto e a sala, cruzando os corredores do banheiro à cozinha, nos tropeços do cotidiano entre pessoas que jamais se armaram para ir a uma guerra. Eu só não havia encontrado eco em outras pessoas que pensassem parecido.
Foi no cursinho pré-vestibular, pouco antes de entrar na faculdade de história, que encontrei respaldo às minhas inquietações. Um professor, explicando os motivos que levaram à Primeira Guerra Mundial, falou brincando: “se vocês pensam que foi por causa do assassinato do imperador Francisco Ferdinando, estão muito enganados. Aquilo foi um embuste pra tirar a atenção do que de fato importava”. E nas horas seguintes explicou o que havia acontecido. Ele estava brincando, mas estava falando sério. Ali, entendi que os livros de história são versões dirigidas e manipuladas de um ideal pedagógico coletivo. Depois, veio a faculdade e as coisas ficaram mais claras pra mim.
Mas a explicação do professor do cursinho não chega nem aos pés da que Gabriel García Márquez nos deu, em 1967, ao publicar o romance Cem anos de solidão.
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Através de sete gerações (cem anos), o autor foi capaz de recriar, sob os aspectos latino-americanos, que estavam gerencialmente sob a batuta dos seus exércitos, o mito da criação do mundo, colocando como protagonistas da sua história o casal José Buendía e Úrsula Iguarán.
Através de sete gerações (cem anos), o autor foi capaz de recriar, sob os aspectos latino-americanos, que estavam gerencialmente sob a batuta dos seus exércitos, o mito da criação do mundo.
Ambos fundaram uma linhagem que, entre mortos e feridos, sentiu na pele de sua genealogia o funcionamento organizacional de um novo mundo. Política, economia, religião, cultura e todos os aspectos que podem definir uma sociedade vão sendo criados e desenvolvidos geração após geração e, como em outras civilizações, vão inevitavelmente sucumbindo em guerras. As inevitáveis guerras que guiam o perturbado espírito humano. Conflitos entre, principalmente, homens, que reféns de sua natureza não vão abrir mão de disputas voluptuosas para conquistar uma cabeça de alface ou até mesmo territórios de além-mar.
García Márquez nos conduz por esse caminho colocando em cheque nossos valores mais arcaicos. É fácil reconhecer os mitos de criação na obra. Assim como é fácil perceber, também, como o ser humano vai perdendo a fantasia, a ludicidade e a crença mística no invisível (representadas no livro pela fascinação de José Buendía no cigano Melquíades) para uma visão de mundo mais quadrada e racional, metrificada e documental, positiva e provável (a entrada dos advogados na história). Adão, Eva e sua primeira prole, ainda desumanizados e ingênuos, vão aos poucos perdendo espaço para disputas de poder, querelas por dinheiro, conflitos pela posse das terras, até chegarmos, juntos com as personagens, à conclusão definitiva: estamos e sempre estaremos sozinhos.
Uma fantástica aula de história da América Latina. Cem anos de solidão foi a obra que sintetizou maravilhosamente, de um lado, o macrocosmo dessa América, e que pode ser estendido facilmente a todos os países de uma forma geral, com suas ditaduras e relações de poder corruptas, tiranas e usurpadoras, e de outro, o microcosmo, e é aqui que o García Márquez é genial, porque, com uma câmera nas mãos, ele adentra as casas e captura a fala das pessoas, o jeito como elas se olham, se comunicam, se enroscam, se amam e se odeiam, seus desejos e afetos, seus sussurros e suspiros. E através desse olhar tão perspicaz e minucioso percebemos melhor como essas relações desenharam (e ainda desenham) no espaço-tempo o que somos.
Um livro para ser lido e amado inúmeras vezes.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]CEM ANOS DE SOLIDÃO | Gabriel García Márquez
Editora: Record;
Tradução: Eric Nepomuceno
Tamanho: 448 págs;
Lançamento: Maio, 1967.
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* Otavio Linhares tem 39 anos e é natural de Curitiba. Tem formação em Filosofia, História, Teatro e Dramaturgia. É editor do selo ENCRENCA e da Revista Jandique.