O britânico China Miéville está longe da figura estereotipada do escritor. Com múltiplos piercings, tatuagens e a cabeça raspada, o autor se assemelha mais a um músico da cena underground ou manifestante revolucionário. Não é difícil imaginá-lo de coquetel molotov na mão, prestes a fazer algum imponente símbolo da ordem pública arder em chamas. Para quem está familiarizado com sua escrita, contudo, não há contradição alguma entre a aparência e o ofício do homem: Miéville traz às suas obras uma das vozes mais incendiárias de toda a literatura fantástica.
Sua habilidade em construir universos próprios de forma minuciosa e absolutamente original está evidenciada em qualquer um dos dez romances publicados, dos quais dois estão disponíveis em português (A cidade & a cidade e Estação Perdido, pela Boitempo Editorial). Ao contrário de outros grandes nomes da fantasia, sci-fi e horror – o tripé da ficção especulativa –, Miéville não tem interesse em estabelecer trilogias, séries ou longas franquias. Embora três dos romances tenham como cenário o mesmo universo (o mundo pós-industrial de Bas-Lag), cada obra se encerra em si, apresentando uma trama fundamentalmente distinta das demais.
Seus universos têm como foco o violento e o insalubre, o industrial e o injusto, o grotesco e febril.
Portanto, é possível escolher qualquer uma como o ponto de partida para conhecer o autor, um dos poucos verdadeiros arquitetos de mundos na ficção especulativa contemporânea. A cada parágrafo, sua voz fornece vislumbres de uma criatividade ímpar – em suma, o que se lê em Miéville não se lê, hoje, em nenhum outro lugar.
Celebrando o insalubre
Se há uma temática central que permeia todas as suas obras, por mais variadas que sejam, é a absoluta despreocupação em retratar o “belo”. Nos mundos fantásticos criados pelo autor, não há espaço para príncipes e princesas, triângulos amorosos ou jornadas heroicas tradicionais. Seus universos têm como foco o violento e o insalubre, o industrial e o injusto, o grotesco e febril.
Em Estação Perdido, operários anfíbios, sistematicamente explorados por uma megalópole corrupta, formam sindicatos e são violentamente repreendidos por milícias mascaradas. Em Embassytown, uma sociedade alienígena, habitando um planeta solitário nos limites do cosmo, desenvolve um violento vício desencadeado por um estranho fascínio linguístico. Em Kraken, gangues e seitas surreais travam batalhas monstruosas no submundo de Londres, disputando o cadáver roubado de uma lula gigante com o objetivo de desencadear o apocalipse. Nas mãos de Miéville, ratos se tornam reis, heróis anônimos terminam suas jornadas em desgraça, e a própria realidade é um mero ponto de vista.
Somada ao aspecto fantástico, a luta de classes é um dos pilares que permeia todas as suas narrativas.
Embora a criatividade seja essencial para a eficácia desse trabalho intenso de construção de mundos, os universos de Miéville se sustentam, principalmente, na prosa densa e detalhista do autor, que faz uso constante de termos sociológicos, anatômicos, geológicos e astronômicos para detalhar personagens e ambientes, facilitando a suspensão da descrença.
Ao descrever as espécies que povoam Bas-Lag, por exemplo, Miéville não mede esforços para que o leitor compreenda cada detalhe de suas morfologias particulares, além de fornecer extensas análises socioeconômicas de cada comunidade. De fato, o aspecto socioeconômico é um de seus focos principais. Como ex-membro do Partido Socialista dos Trabalhadores e um dos fundadores do partido marxista Left Unity, Miéville não perde a oportunidade de escancarar as relações de poder, expondo, de forma impiedosa, a escravidão, a exploração industrial e a podridão de Estados corrompidos pelo capital. Somada ao aspecto fantástico, a luta de classes é um dos pilares que permeia todas as suas narrativas.
Os herdeiros de Lovecraft
O fascínio pelo surrealismo grotesco, horror cósmico e pela natureza múltipla da realidade não é exclusividade do autor. Ao lado de escritores como Jeff VanderMeer e K.J. Bishop, Miéville foi identificado como o principal expoente do New Weird, movimento literário em que a norma é a fusão inovadora de gêneros (horror, mistério, fantasia, romance histórico etc.) e a influência de autores clássicos do horror como H.P. Lovecraft.
Miéville e os autores do New Weird buscam subverter a fantasia tradicional, povoando seus universos particulares com personagens complexas, dilemas éticos extraídos da mitologia e da literatura clássica e, principalmente, situações e cenários que suscitam uma sensação constante de estranhamento.
Ler Miéville e confrontar a realidade em que vivemos pode não ser confortável, mas é, certamente, uma experiência enriquecedora.
ESTAÇÃO PERDIDO | China Miéville
Editora: Boitempo Editorial;
Tradução: Fábio Fernandes e José Baltazar Pereira Júnior;
Tamanho: 608 págs.;
Lançamento: Maio, 2016.
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A CIDADE & A CIDADE | China Miéville
Editora: Boitempo Editorial;
Tradução: Fábio Fernandes;
Tamanho: 295 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2014.