Um dia antes de que 2014 escapasse para sempre e em meio às promessas para o porvir, estabeleci uma resolução um tanto audaciosa comigo mesma. Mais do que um objetivo pragmático, tratou-se de uma missão que julgo transcendente: a de ler, ao longo de 2015, pelo menos cinquenta livros – e não tons de cinza.
Essa aventura pelos campos da literatura é uma busca bastante influenciada pela autocrítica de que, talvez, eu não tenha me debruçado sobre as linhas da ficção tanto quanto eu gostaria de tê-lo feito no ano que findou. Um exagero da minha parte, penso. Atuando como mediadora de leitura, certamente li muito mais do que a ingrata média brasileira de pouco mais de dois ou três livros ao ano. Ler, individualmente ou para um grupo, fazia parte das minhas atribuições diárias. No entanto, a atividade profissional era também um prazer particular. Uma investigação sobre o eu e o outro. Um ato de resistência. Mais do que rotina, ler é desassossego, é travessia. E a literatura, para mim, representa uma possibilidade outra, mais fabulosa e criativa, de contemplar o mundo ao meu redor.
Não cheguei a contar quantos foram os livros no ano passado. Talvez vinte. Ou trinta. Ou menos. Ou bem menos do que eu poderia. Houve leituras necessárias para compor as mediações. Leituras certeiras para aliciar o público a se arriscar por romances, contos. Houve ainda leituras frustrantes para dado momento. E leituras avassaladoras para todo sempre. A vontade era por muitas. A falta de tempo, o cansaço e todas aquelas desculpas cotidianas levaram-me a poucas. Poucas? Ah, a autocrítica.
Para dar conta do “Desafio dos 50 livros” ao qual me propus, vou precisar fazer quatro leituras por mês, em média. Em abril, setembro ou qualquer outro, serão cinco, para arredondar a conta. É claro que esses cálculos simulam estimativas meramente virtuais. Seria leviano tentar reservar uma mísera semana para Graça Infinita ou Ulysses – não tanto pela extensão, mas principalmente pela densidade desses textos. Os prazos, portanto, serão totalmente maleáveis a depender da leitura e do esforço para sua cruzada.
Mais do que rotina, ler é desassossego, é travessia. E a literatura, para mim, representa uma possibilidade outra, mais fabulosa e criativa, de contemplar o mundo ao meu redor.
Por se tratar de um desafio cuja vocação é literária, leituras técnicas ou acadêmicas não contam. Livros infantis, por melhor que sejam – e há mesmo títulos excelentes! –, também não entram para a estatística. Já os títulos infanto-juvenis (a seção 028.5 das bibliotecas brasileiras) estão liberados, até porque não há como desconsiderar a genialidade das histórias de Julio Verne ou as artimanhas de J.K. Howling para prender crianças e adolescentes a um catatau de 702 páginas como Harry Potter e a Ordem da Fênix. Por falar em catataus ou do próprio, 1/5 das leituras deverá ser de escritores curitibanos – de origem ou de adoção. Outra vez a autocrítica: embora Paulo Leminski, Valêncio Xavier, Marcos Prado e Jamil Snege estejam entre os meus autores favoritos, desconheço a obra de muitos outros sais desta terra. Karam, Kolody ou mesmo o contemporâneo Leprevost são ainda ilustres incógnitas do meu repertório. “Em busca de Curitiba perdida”, de seus poemas e poetas, (re)descubro a mim mesma.
No mais, tá valendo graphic novel, tá valendo biografia, tá valendo livro de poesia concreta e até revista literária em formato livro. E é evidente que releituras são aceitas. Aliás, eu realmente não concordo com leitores que fazem pouco caso delas. Assim como “não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio”, um homem não lê duas vezes o mesmo livro. Minha afirmação deriva da mais pura empiria: compartilhei, por exemplo, o mesmíssimo A Ilha Misteriosa com dezenas de turmas distintas e, a cada vez, eu me flagrava envolta de novas interpretações sobre um texto que eu já sabia de cor – “E agora, estamos subindo? Pelo contrário, senhor Cyrus, estamos descendo e caindo”. Os capítulos até eram os de sempre. Mas a leitora não – nem nunca será. Por isso, vou sim (re)ler A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao, Grande Sertão: Veredas ou o que mais eu estiver com vontade featuring tempo.
Algumas balizas aqui instituídas podem parecer inconcebíveis para muitos. Eu bem sei o quanto, pensando em Bartolomeu Campos de Queirós ou Wolf Erlbruch, a exclusão da literatura infantil é polêmica. Sei também que vai ter quem discorde da inclusão de histórias em quadrinhos neste rol ou quem considere que jornalismo literário não é literatura propriamente dita. A minha resposta para isso é que Persépolis ou Hiroshima atravessaram minha essência tanto quanto A morte de Ivan Ilitch. Além do mais, a missão é pessoal. Os critérios (ou falta de) para alcançá-la também.
Vocês, caros leitores, poderão acompanhar ao progresso das minhas leituras semanalmente nesta coluna hoje inaugurada. Caso queiram sugerir ou pedir indicações de autores, livros ou gêneros, estejam à vontade. Comentem, partilhem, descubram cada compartimento da Escotilha. Por fim, experimentem deixar sua zona de conforto e desafiem-se também, seja a que tarefa: cinquenta livros, discos ou, quem sabe, tons de cinza.
O contra desta capa representa uma bravata: leiam mais.
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