Além de narrar os percursos do desafio de me aventurar por cinquenta livros ao longo de 2015, esta Contracapa pretende propor reflexões sobre o ato de ler. A intenção é a de abrir um canal de discussão a respeito da leitura que não se encerre nas dimensões do livro, ampliando as perspectivas de abordagem sobre essa prática cultural. Nos próximos capítulos, certamente estarão estampados os critérios ou aleatoriedades que me fizeram chegar a uma determinada obra, a travessia pelas múltiplas camadas de fruição de cada enredo e as possibilidades de diálogo com outras referências sociais, culturais e midiáticas. No entanto, a coluna também será espaço para algumas ruminações sobre a compreensão de leitura, seus territórios e expedições.
Palavra e prática em efervescência em nossa terra de cachorros-loucos, a leitura é hoje objeto de políticas públicas, mote de iniciativas particulares, protagonista de pautas jornalísticas e assunto que transita entre o foro das discussões acadêmicas e o café com conversa nas feiras – literárias ou de domingo, no Largo. Tudo isso é, de fato, muito positivo quando se pensa na formação de uma sociedade mais leitora.
Os esforços dessas dezenas de empreendimentos voltam-se principalmente à promoção da leitura, de modo a criar e a atender a uma demanda cujo potencial é enorme. A prática de se debruçar sobre as histórias, definitivamente, não pode ser atividade reservada a poucos. Pelo contrário: é preciso formar leitores. Muitos. E por meio da proliferação de espaços destinados à leitura, do acesso facilitado ao acervo de pequenas e grandes bibliotecas e da realização de ações culturais com esse viés, tem se tornado possível garantir à comunidade o direito de poder ler.
Nesse início de ano, revisitei “A Arte de Ler ou como resistir à adversidade”, da antropóloga francesa Michèle Petit. As reflexões de Petit ressaltam a importância do direito à literatura como um bem “de riqueza indubitavelmente sem igual”, ao defender que todo indivíduo deveria poder perceber que a apropriação da escrita (e, por consequência, da leitura) não apenas é desejável, como também possível. Para ela – e certamente para mim e para os entusiastas da literatura -, cultura e arte “não são um suplemento para a alma, uma futilidade ou um monumento pomposo”, mas algo que urge em estar à disposição de todos.
A intimidade com os livros permite o desenvolvimento de habilidades como inventividade, fabulação, poeticidade, expressividade e argumentação.
Mais do que poder, no entanto, é preciso querer ler. Ainda mais em uma “cosmópolis” em que o bombardeio de informações (sobretudo nos ambientes virtuais) é perene e o consumo de outras linguagens parece demandar menos esforço. É claro que não se deve desprezar a apreciação de diferentes artes, mesmo porque um conceito amplo de leitura não se restringe à compreensão das palavras, mas ultrapassa o formato texto para alcançar a observação e a interpretação de múltiplas situações, sendo artísticas ou não. Só que, em meio a tudo isso, o apelo à fruição de livros pode parecer não tão atrativo quanto assistir a um filme no cinema ou ir a um show de rock.
A favor da literatura, alguns argumentos podem servir como chamarizes. A intimidade com os livros permite o desenvolvimento de habilidades como inventividade, fabulação, poeticidade, expressividade e argumentação. Além disso, a prática da leitura torna o indivíduo um leitor crítico – e não apenas mero decifrador e reprodutor de códigos pré-estabelecidos, como, infelizmente, tem ocorrido com a maioria. Eliana Yunes, diretora da Cátedra UNESCO de Leitura e integrante da estruturação do primeiro momento do Programa Nacional de Incentivo à Leitura, compartilha a ideia de que resgatar a capacidade leitora dos indivíduos significa restituir-lhes a capacidade de pensar e de se expressar cada vez mais em sua relação social, fortalecendo o espírito crítico e a consequente construção de sua cidadania.
De igual modo e em uma perspectiva mais funcional, o indivíduo que exercita periodicamente a leitura desenvolve sua faculdade discursiva, sobretudo na escrita, tendo em vista que um bom livro é também um compêndio de bons exemplos de como utilizar a linguagem e seus recursos textuais e valer-se deles para expressar uma ideia ou sentimento. Na fala de Petit, a leitura permite dar sentido a nossas vidas e simbolizar nossas experiências.
Uma sociedade que se pretenda leitora precisa estar firmada sobre o tripé produção – publicação – fruição. Se a intenção é valorizar a literatura em Curitiba enquanto linguagem estética – sim, porque a prosa e a poesia são tão arte quanto o cinema, a música e o teatro -, precisamos fomentar a produção literária local, publicar e distribuir livros e, por fim, garantir meios de incentivar a população a contemplar de maneira espontânea títulos literários e peças artísticas. O Curitiba Lê – programa municipal de incentivo à leitura -, por exemplo, consegue atingir ao objetivo de promover a prática de ler e de identificar a literatura enquanto arte, por meio do trabalho desenvolvido pelas Casas da Leitura. Além dessa política governamental, outras ações compõem o processo de leituralização na cidade, de diversos modos (vide os casos de Um Escritor na Biblioteca, do Sarau Popular, da Freguesia do Livro ou do Poiésis). Rodas, ciclos e clubes de leitura, oficinas de análise e criação, saraus, cafés e lançamentos literários ou conversas com autores são importantes dispositivos no cenário do estímulo às letras. Merecem, pois, serem reconhecidos. Disseminados. Discutidos.
Enfim, são vários os aspectos que podem servir como norteadores quando se pensa em leitura. Esse debate carece de ser ampliado, a fim de compreender a totalidade e a complexidade que envolve a prática de ler. Por isso, não deixem de refletir e de participar desta e de outras abstrações.
O contra desta capa representa uma bravata: leiam mais.