Na teoria, um corpo é um corpo, emaranhado de órgãos com um mínimo de ordem acompanhados de umas coisas sem forma, umas peças invisíveis chamadas sentidos e sentimentos sem ordem nem lógica, talvez até alma, se a palavra cabe. Essa abstração seria poética para qualquer personagem, mas o que temos não é conversa filosófica nem inclinação poética, porque o protagonista de Corpo Sepulcro (Confraria do Vento, 2015), romance de Mike Sullivan, não cabe em si.
Um tempo fora do país poderia ser um começo para muitas ideias novas, mas uma chamada telefônica muda tudo. O nosso narrador tem de voltar para a casa de sua família, com quem possui uma relação traumática. Qualquer migalha de sonho vira menos do que isso quando ele se vê coagido a viver lá, com o que ele gostaria de enterrar o perseguindo em todas as suas sensações.
Ele consegue levar à sepultura um dos fatores que o incomodavam, mas isso não o aliviou nem um pouco. Seu passado está impregnado no corpo, cada passo o conduz a um pesadelo interno e sensorial, como se ele pudesse sair fisicamente daquele lugar e do que ele representa, mas o contrário não tem chance de acontecer. O que acompanhamos não são apenas os pensamentos depressivos de um personagem às voltas consigo, com a vida que o gerou e da qual deseja se livrar – seria o suficiente para dar uma carga fúnebre à trama, principalmente quando sabemos mais do passado dele -, e sim a constatação de seus sentidos o deixando tão atormentado quanto sua mente.
O que acompanhamos não são apenas os pensamentos depressivos de um personagem às voltas consigo, com a vida que o gerou e da qual deseja se livrar, e sim a constatação de seus sentidos o deixando tão atormentado quanto sua mente.
O cheiro pútrido de um ente próximo condenado à doença e aos fedores medicinais; o aroma de cigarro de si mesmo, compartilhado, roubado, misturado, nem ele sabe, com o aroma da mãe e da própria vida. O cheiro de uma coisa parecida com um lar, um apartamento no qual ele passa a viver um tempo, ou pelo menos tentar; aquele dos lugares onde vai, farejando cantos atrás de um entretenimento novo. Ele consegue suas distrações. Um pouco de pó, vinho ainda que barato porque álcool é o seu sangue postiço, sexo insípido com o mais perto que ele tem de uma parceira, sexo cada vez mais sujo porque se viciou e precisa de uma sensação mais forte que a anterior. Não resolve, mas alivia bastante.
Mesmo sendo nítido o buraco cada vez mais fundo que o nosso protagonista cava para si, arrastando suas poucas pessoas próximas consigo, ele comove. Comove porque não cabe em si de tamanho desamparo, sendo cruel consigo na mesma medida em que se sentiu julgado silenciosamente assim. Suas tentativas de criar vínculos, ainda que raras e atravessadas, são desconfortáveis pela presença insistente do passado, somada às intempéries sensoriais do narrador. Se durante a leitura a gente desconfia de que ele vá se dar mal de novo, talvez seja porque mesmo sabendo da tendência autodestrutiva desse cara ainda torce pra ver ele sair desse sepulcro em que ele está preso.