Ainda que em número pequeno para um autor de mais de 60 títulos publicados, cada vez mais temos tido a oportunidade de entrar em contato com a obra e o estilo únicos do argentino César Aira. Depois da Rocco publicar Como Me Tornei Freira, na Coleção Otra Língua, agora foi a vez do público brasileiro ter acesso a Os Fantasmas, obra inquietante escrita há quase 30 anos e que permaneceu por todo esse período inédita no Brasil.
O escritor argentino é de uma pena única. Ele não passa incólume à crítica e aos leitores, seja como gênio ou louco, dispensável ou fundamental. Sua produtividade, seu distanciamento irônico, as referências artísticas que transcendem a literatura, a irracionalidade com que compõe uma prosa tão profunda e complexa quanto o próprio seu próprio país, mesmo a falsa simplicidade de seus textos, muitos deles breves contos que mal superam as 40 páginas, uma espécie de balanço ao excesso criativo e imaginativo de Aira, são suas marcas registradas.
Em seus romances, Aira transita pela fronteira entre a narrativa e o discurso, entre o complexo narrativo-descritivo e o sentencioso, algo que muitos dos escritores modernos e pós-modernos evitaram. Em Os Fantasmas, essa relação é um pouco mais complexa.
Em seus romances, Aira transita pela fronteira entre a narrativa e o discurso, entre o complexo narrativo-descritivo e o sentencioso, algo que muitos dos escritores modernos e pós-modernos evitaram. Em Os Fantasmas, essa relação é um pouco mais complexa.
Os Fantasmas se situa em um ambiente relativamente fechado, ainda que densamente povoado, e se passa em uma data específica: 31 de dezembro, último dia do ano, quente e abafado como sempre na capital argentina. Espécie de fábula urbana de cunho social, a obra é ambientada na Buenos Aires da década de 1980. Aira centraliza o prédio em que a trama ocorre no bairro de Flores e, a partir da inocência e ingenuidade da jovem Patri, nos guia com sutileza pelos habitantes deste prédio ainda inacabado, onde coincidem três grupos de personagens: os futuros proprietários dos apartamentos, que visitam suas propriedades para planejar reformas, mobiliário, decorações; os trabalhadores que estão construindo o prédio, juntamente com o zelador que já foi precariamente alojado em um dos andares; e um terceiro grupo, o dos fantasmas, que são seres incorpóreos e sem peso sobre os quais pouca informação nos é passada.
O escritor argentino usa o livro para refletir sobre literatura, economia, arquitetura, vida e morte sob diferentes vieses. A escolha de personagens chilenos não se dá à toa. Durante anos, argentinos e chilenos travaram inúmeras batalhas territoriais, que culminaram em rancor e uma rivalidade muito forte entre as duas nações. Em alguma medida, César Aira usa Os Fantasmas como uma espécie de confronto com o próprio país, evidenciado pelo apreço que o grupo de chilenos recebe do escritor, ao passo em que não perde a oportunidade de soar ácido com seus conterrâneos.
César Aira inicia a obra com uma visão multifocal da vida que se passa neste prédio, passando de um grupo de personagens a outro de forma a dimensionar aquele espaço a partir das idiossincrasias de seus habitantes. Mas, em dado momento, ele se concentra no pequeno grupo de chilenos, e opta por ficar como observador de suas relações, tanto entre si como com o restante do mundo, suas características enquanto imigrantes e, claro, o desenvolvimento da personalidade de Patri, uma adolescente que vive o dilema de tentar compreender o quanto está disposta a oferecer pela oportunidade de viver uma grande emoção, uma situação única em sua ainda jovem vida.
Escrito em um ritmo lento, o que exige certa paciência do leitor, Os Fantasmas caminha até um final arrebatador, diria até sufocante. Um grande flerte entre o surrealismo e o realismo com um pé no fantástico desse prolífico escritor argentino. Imperdível, para não dizer “leitura obrigatória”.
OS FANTASMAS | César Aira
Editora: Rocco;
Tradução: Joca Wolff;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Junho, 2017.