Com a popularização da internet surgiram novas formas de comunicar e informar, assim como novas maneiras de difundir esses gêneros. Exemplo disso é a veiculação de resenhas e críticas literárias, antes postas em jornais e revistas especializadas e, atualmente, tidas em sites e blogs, assim como em canais do YouTube. Esta transição trouxe muitas questões à tona, como as contribuições desse material e seu papel na indústria editorial.
Recentemente, o autor e jornalista Ronaldo Bressane postou em suas redes sociais o orçamento que uma booktuber – pessoa que faz vídeos de cunho literário no YouTube – cobrou para divulgar um livro. A esta publicação se seguiram muitas manifestações e não demorou para que fosse instaurada uma discussão acalorada na internet. O entrevero tomou novas proporções quando o editor, escritor e publisher da Serrote, Paulo Roberto Pires, escreveu o artigo “A impostura booktuber“, publicado na revista Época (leia-o aqui).
Nesta discussão, de um lado ficaram as pessoas indignadas com o fato de que estava sendo cobrado para um livro ser divulgado em um vídeo, e do outro pessoas que defendiam a atitude da booktuber, tendo em vista que essa é sua forma de trabalho. Mas para entender melhor essa discussão é preciso destrinchar esse parâmetro, enxergar os tons de cinza.
Crítica x Resenha
Procurado pela reportagem para comentar o caso, Bressane afirmou que tudo que teria a dizer sobre o assunto já haveria comentado em um texto publicado na plataforma Medium (leia-o na íntegra aqui). Para o autor, que centra parte de sua crítica à legitimidade da opinião do booktuber, o “resenhista youtuber não precisa saber escrever, como o jornalista ou crítico literário: ele apenas fala o que lhe vem à cabeça.”
Primeiramente, é importante ressaltar que crítica literária e resenha são dois gêneros textuais distintos. Pode parecer trivial, mas essa diferenciação permite que parte da discussão seja melhor compreendida.
“Acredito que a crítica literária propriamente dita seja algo reflexivo, aprofundado, ancorado em uma fundamentação rigorosa. Ela exige formação e estudo por parte de quem a pratica. As resenhas, não, ou não necessariamente. Essas têm um caráter mais ligeiro, superficial (até pelo pouco espaço disponível) e impressionista, é sempre aquilo de gostei, não gostei”, explica André de Leones, escritor, resenhista literário d’O Estado de S. Paulo e cronista d’O Popular.
Além disso, a discussão levantada pelo autor Ronaldo Bressane também pode ser vista por um outro tipo de equívoco: o de interpretação. “Acredito que ele tenha mostrado sua indignação como jornalista, ao encarar que uma pessoa estava cobrando para cobrir uma pauta. O que bate de frente com o código de ética do jornalista, que diz que o profissional não pode divulgar informações visando o interesse pessoal ou buscando vantagem econômica”, comenta Leonardo Neto, editor da PublishNews, portal especializado em notícias sobre o mercado editorial e a indústria do livro.
Neto ressalta que é preciso entender que o trabalho feito pelos booktubers é comumente voltado para a área da publicidade, atuando como divulgação, não sendo necessariamente jornalismo, apesar de que os influencers podem mesclar ambos os conteúdos em seus vídeos.
Contribuições das resenhas literárias no YouTube
Com a democratização de vozes proposta pela internet e a não-obrigatoriedade de especialização para elaborar esses conteúdos opinativos/indicativos, atualmente, qualquer pessoa pode fazer uma resenha literária e publicá-la em uma plataforma digital. E essa mudança tem suas contribuições positivas.
“Em termos de divulgação, é enorme a diferença de possibilidades. Antigamente, a notícia da existência de um livro, ou sua apresentação a um espectro mais amplo de pessoas, estava bastante reservada à sua presença nos jornais ou revistas de grande circulação. Hoje, todo livro lançado tem disponível alguma outra forma de ser divulgado”, comenta Rafael Gallo, autor dos livros premiados Rebentar (Record, 2015) e Réveillon e outros dias (Record, 2012). A posição é compartilhada pelo escritor André de Leones. “A partir dessa mudança, tenho contato mais direto com os leitores e resenhistas, além de favorecer a rápida disseminação das informações acerca do que escrevo e publico”.
É no YouTube, em canais de booktube, que resenhas literárias atualmente encontram espaço para serem amplamente elaboradas e repercutidas. São diversos canais que tecem críticas e comentários sobre lançamentos editoriais mundiais, buscando não apenas indicar livros para sua audiência, mas objetivando planos maiores.
“Nós [booktubers] auxiliamos na tarefa de formar novos leitores, ao utilizar a linguagem que o jovem está acostumado a ouvir. Trazemos os livros para o universo pop, para a cultura jovem, assim como buscamos tirar o livro daquele ambiente traumatizante que, muitas vezes, as escolas proporcionam”, explica a booktuber Isabella Lubrano, criadora do canal Ler Antes De Morrer.
Isabella, que também é jornalista, ressalta que os canais literários podem atuar, ainda, como forma de visibilizar autores e livros marginalizados da grande mídia. “Os autores independentes, os que se auto publicam, os que estão fora do eixo Rio-São Paulo, aqueles que ainda estão em construção, eles têm no YouTube um canal para atingir um público maior do que eles conseguiriam com seus próprios recursos ou com sua rede de contatos”.
Quando a resenha literária é publieditorial
É inegável que os influenciadores digitais movem muitos setores comerciais no contexto atual, devido à sua capacidade de promover efetivamente produtos para uma audiência fiel. Desse modo, os próprios setores buscam neles uma aliança para se manterem interessantes para o público.
No artigo de Bressane no Medium, ele também aponta que pode haver dificuldade em crer na imparcialidade das opiniões que os youtubers expressam em seus vídeos. “Se me disponho a vender uma opinião, mesmo que indique que aquela é uma opinião vendida, todas as outras opiniões foram contaminadas pelo mesmo princípio.”
De acordo com o raciocínio do jornalista, a indicação de que o booktuber teria feito um publieditorial jogaria uma nuvem de desconfiança sobre os demais vídeos do canal, afinal, o espectador não teria a clareza se estes também não teriam sido opiniões dadas mediante pagamento. “É a mesma pessoa, tendo o mesmo fundo de estante de livros, a mesma voz, a mesma entonação. E, como já acontece entre a maioria dos perfis de digital influencers, a maioria dos navegantes não diferencia um post pago de um post espontâneo.”
Nos canais de booktube, normalmente funciona assim: a editora paga ao booktuber para ler um livro, escolhido dentro de uma lista, que posteriormente deve ser comentado em um vídeo. A estratégia é vantajosa para as editoras, que não precisam pagar caro para divulgar os livros em mídias tradicionais, onde comumente não alcançam o engajamento conquistado na rede social.
“Muitos inscritos se identificam com algum booktuber e com seu conteúdo, passando a confiar quase que cegamente nas indicações colocadas ali. E isso é muito importante para o mercado editorial, porque tem canais que alcançam até 20 mil pessoas. Então imagina um livro tendo esse tipo de visibilidade?”, ressalta Victor Almeida, criador do famoso canal literário Geek Freak.
‘A estratégia é vantajosa para as editoras, que não precisam pagar caro para divulgar os livros em mídias tradicionais, onde comumente não alcançam o engajamento conquistado na rede social’.
Um exemplo prático de como essa visibilidade é benéfica para as editoras pode ser visto com a reação de mercado após a youtuber Jout Jout indicar no seu canal o livro A parte que falta, publicado pelo selo Companhia das Letrinhas. Antes da indicação, a obra não demonstrava sinais de sucesso de vendas; bastou o vídeo da youtuber para ele conquistar a lista dos mais vendidos.
E então surge mais uma questão na discussão levantada a partir do post de Ronaldo Bressane: ao pagar para que os booktubers façam esse trabalho de divulgação, este não passa a ter um teor ético deturpado? Ou seja, os booktubers podem se isentar de dar um posicionamento negativo em detrimento do dinheiro pago por editoras ou autores?
Geralmente não. Quem explica melhor esse quadro é Bruno Mendes, sócio do #coisadelivreiro, agência de consultoria em marketing e inteligência para o mercado livreiro e editorial. A empresa é formada por livreiros, editores e produtores de conteúdo, dentre eles os booktubers.
“Os booktubers com quem trabalhamos têm em comum a preocupação de esclarecer às editoras e autores que o espaço é pago, sua opinião, não. E o acesso a esse espaço só é permitido a livros que, de fato, agradem seu gosto literário. Nunca fizemos uma campanha em que um criador de conteúdo tenha mentido sobre ter gostado de um livro. Mas já cancelamos várias campanhas porque o livro não agradou ao leitor/booktuber”.
Victor Almeida, que conta com quase 100 mil inscritos no seu canal literário (Geek Freak), também comenta sobre a questão utilizando sua experiência para ilustrar. “Algo que sempre faço quando fecho um publieditorial é dizer ao interessado: você pagando não garante uma opinião 100% positiva, vou dar minha opinião verdadeira. Se por um acaso eu não curtir o livro ou talvez chegar à conclusão que vai prejudicar o autor o vídeo que eu fizer, opto por não fazê-lo. Então, entro em contato com ele, converso, a gente concorda, e se for necessário, devolvo o dinheiro. Mas nunca no canal fingi gostar de um livro porque estava sendo pago”.
É importante reforçar que o trabalho do booktuber é diferente do crítico literário, ou do jornalista. Contudo, na conjuntura ideal, se faz tão importante quanto no funcionamento do mercado editorial. Um trabalho que apesar de ter um cunho de marketing, por ser de divulgação, vai além ao fomentar o hábito de leitura de uma forma descontraída e efetiva.
“É a possibilidade de horizontalização da experiência literária. A nosso ver, em um país onde não há incentivos culturais o suficiente, o booktube só tem a contribuir”, conclui Mendes.